Sobre o objetivo deste blog.

Os textos a serem postados aqui neste blog se referirão sobremodo ao campo da clínica (da psicoterapia e da técnica) e suas interfaces, tais quais, a arte (literatura e cinema) e o social (política e subjetividade). O objetivo deste blog é servir como um meio de informação acerca da relevância e viabilidade do processo psicoterápico, bem como levar à reflexão acerca da contemporaneidade através do arcabouço teórico psicanalítico.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma breve nota sobre “A origem”, de Christopher Nolan: ou como não ceder ao próprio desejo.

Uma breve nota sobre “A origem”, de Christopher Nolan: ou para não esquecer uma lição psicanalítica fundamental sobre a relação entre sonho e realidade.

Escrevo esse texto para defender uma tese em certa medida simplória: o filme em questão (A Origem, de C. Nolan) traz de um aspecto fundamental da elaboração freudiana acerca dos sonhos, a saber: não sonhamos para fugir da realidade da qual vivenciamos quando estamos acordados, nós acordamos para não lidar com o desejo exposto a nós mesmos pelo trabalho do sonho. Portanto, a interpretação que proponho do filme é baseada na pressuposição de que seu protagonista, interpretado brilhantemente por Leonardo DiCaprio, está dormindo o tempo inteiro. Assim, pretendo utilizar o filme para elucidar uma questão freudiana fundamental acerca da relação entre fantasia e realidade, de modo defender que a fantasia não está subjugada à realidade, mas, pelo contrário, ela estrutura o nosso acesso ao real.

No aspecto mais simples da interpretação que intento lançar, poderia utilizar como exemplos o fato de que, ao contrário de outros personagens, Don Cobb, o protagonista interpretado por DiCaprio, jamais aparece morrendo factualmente. Levando-se em consideração que o ato de morrer ocupa na economia discursiva do filme um papel principal de acesso à realidade para além do sonho, é cabível entender que o fato de Don Cobb jamais morrer é porque ele jamais acorda. Aliás, não seria sua idéia delirante sobre como trafegar entre níveis de sonhos diferentes através de um empurrão que simule uma queda motivada por uma fobia tremenda de morrer dentro do sonho? Por fim, o fato de que seu amuleto (uma espécie de peão) roda sem ceder às leis do real (gravidade e inércia) sugere que suspeitemos estar diante de um belo sonho de Cobb. Outras cenas, tais quais a conversa esclarecedora com sua “ex-esposa” Mal onde ela o inquire diretamente sobre o fato de ele não estar querendo acordar, o que explicaria as perseguições paranóicas, pois, novamente segundo a economia discursiva do filme, quanto mais um sonhador tenta controlar a dinâmica do sonho mais ele é perseguido por projeções que tentarão matá-lo para acordá-lo.

Espero que este parágrafo anterior, basicamente uma defesa da viabilidade de minha interpretação, tenha sido o bastante e que se possa, a partir dele, começar de fato a reflexão. Pois bem, uma vez aceita a idéia de que estamos diante de uma narrativa em primeira pessoa e portanto assistindo as peripécias de Don Cobb em seus sonhos, a problemática passa a ser: como Cobb consegue, ao contrário de todos nós, manter-se num sonho por tempo indeterminado? Por que nós, diante de um sonho bom ou ruim, sempre acordamos e não conseguimos dominar nosso sonho a ponto de continuar dormindo? O que Cobb sacou e tornou possível?

No capítulo III da Interpretação dos Sonhos, Freud (1996, p. 157) lança uma questão que é trabalhada em A Origem: “Pode um sonho dizer-nos algo de novo sobre nossos processos psíquicos internos? Pode seu conteúdo corrigir opiniões que sustentamos durante o dia?”. Cobb subverte esse raciocínio freudiano na medida em que enseja entender como processos psíquicos internos que se sustenta durante o dia pode corrigir a gramática do sonho afim de prolongá-lo. Mas como ele é capaz de tamanha façanha? Proponho que releiamos Freud para compreender a façanha de Cobb.

Um dos objetivos de Freud não é se perguntar sobre o conteúdo verdadeiro do sonho enquanto tal, como se houvesse a possibilidade de uma narrativa fidedigna e última sobre tal fenômeno. Embora admita a possibilidade de que interpretações venham a dar, em certa medida, a verdade do sonho, isto é, demonstrar que tipo de desejo está em jogo, o objetivo freudiano é, por assim dizer, entender porque certos desejos assumem a forma de sonho. Como diz Zizek (1996, p. 297), “o entendimento teórico da forma dos sonhos não consiste em desvendar, a partir de seu conteúdo manifesto, seu ‘cerne oculto’, os pensamentos latentes do sonho; consiste na resposta à pergunta: por que os pensamentos latentes dos sonhos assumiram essa forma, por que foram transpostos para a forma de um sonho?”. Significa, portanto, um questionamento não do segredo por trás da forma, mas o segredo da própria forma.

A aposta freudiana é de restituir ao sonho a dignidade de fenômeno psíquico possuidor de uma certa lógica, regida sob a ordem do inconsciente. Quando o paciente está já desperto, emerso na experiência analítica, e conta como foi seu sonho, esse próprio ato de falar diz acerca de seu próprio desejo. Em Freud, é o questionamento do desejo do sujeito e não do conteúdo verdadeiro de seus sonhos que está em jogo. Diante de um relator de sonhos, um psicanalista se pergunta: por que esse desejo que aparece tão nitidamente na arrumação dessa narrativa assume a forma de um sonho aparentemente ilógico? A partir das interpretações que tem como alvo o desejo que assumiu uma forma específica pelo trabalho do sonho – e não o objetivo de dizer a verdade oculta por trás do próprio sonho – Freud intenta produzir efeitos clínicos diante de seu paciente agora acordado, desperto, consciente.

A façanha de Cobb está em subverter Freud. O sujeito, neste caso, não está acordado diante de um psicanalista contando seu sonho depois de tê-lo sonhado. Ele permanece sob o registro do sonho. As tentativas de Mal em acordar Cobb foram todas em vão, isso significa que não havia nenhuma possibilidade de mostrar a Cobb que ele permanecia dormindo e que toda sua história de que foi Mal que não suportou a realidade é apenas uma formação reativa[1] sua de que é ele próprio que não suporta a iminência de parar de sonhar? Utilizando toda a abertura artística provocada pelo filme, podemos apostar que uma última intervenção poderia ter sido feita por Mal. Intervenção esta que consistira em demonstrar a Cobb como ele próprio conseguiu subverter o sonho.

Para entender a “subversão onírica” de Cobb, temos de entender uma lição freudiana fundamental, a saber, de que o sonho é a realização de um desejo. De maneira simples, se sentimos vontade de urinar enquanto estamos em sono profundo, podemos trabalhar essa necessidade fisiológica de modo que ela ganhe, no sonho, a narrativa de uma bela cachoeira a céu aberto; se sentimos vontade de beber água enquanto dormimos, podemos, submetendo essa idéia a um trabalho inconsciente, termos a vivência onírica de que estamos bebendo um gigante copo d’água. E assim segue. Esses exemplos servem para demonstrar a primeira implicação dessa tese freudiana de que o sonho é a realização de um desejo, ou seja, sonhamos porque queremos continuar dormindo.

Isso não explica, contudo, o fato de que sonhos ruins aconteçam e nos façam acordar abruptamente. Como lidar com essa constatação? Entrando na última parte de minha argumentação, cito um sonho que Freud narra em seu fabuloso capítulo VII da Interpretação dos Sonhos:

As condições preliminares desse sonho-padrão foram as seguintes: um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e que a mortalha e um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles. (FREUD, 1996, p. 141)

Tem-se aí um exemplo de como um sonho pode impelir o sujeito a despertar-se. Nesse sonho, podemos continuar a idéia freudiana anterior de que talvez tenha sido o clarão do fogo no outro quarto que, chegando aos olhos do sonhador, mesmo com as pálpebras fechadas, produziu, sob a forma de sonho, a mensagem de incêndio. Podemos contestar, também, que embora o sonho tenha despertado o pai, produziu uma sensação muito boa, pois ele pôde conversar com seu filho vivo na forma de sonho. Embora essa sensação benévola se torne intensa demais, afinal de contas o filho morrerá queimado se o pai nada fizer, há um mecanismo onírico que inclui o elemento irritante do fogo de forma prazerosa.

Remeto novamente a uma reflexão de Zizek para dar fim a esse texto:

“O sujeito não acorda quando a irritação externa torna-se intensa demais; a lógica de seu despertar é bem diferente. Primeiro, ele constrói um sonho, uma história que lhe permita prolongar seu sonho, de modo a evitar despertar para a realidade. Mas a coisa com que se depara no sonho, a realidade do seu desejo, o Real lacaniano – em nosso caso, a realidade da censura do filho ao pai, ‘Não vês que estou queimando?’, que implica a culpa fundamental do pai – é mais aterrorizante do que a própria chamada realidade externa, e é por isso que ele acorda: para escapar ao Real de seu desejo, que se anuncia no sonho como apavorante” (ZIZEK, 1996, p. 323).

Portanto, o pai foge de sua culpa acordando. A “subversão onírica” de Cobb é enfrentar seu próprio desejo dentro de seu sonho, o que significa não ceder ao próprio desejo e acordar. Quando ele enfrenta a culpa de ter deixado Mal para continuar no sonho (culpa esta que o persegue inelutavelmente durante toda a trama), na sua conversa derradeira no filme, ele está subvertendo a lógica do sonho: quando a forma onírica mostra a Cobb a realidade de seu desejo, ele não cede, ele não é vencido; pelo contrário, ele enfrenta o desejo e vence.

É por isso que ele consegue dormir perpetuamente. Pois ele não acorda e foge diante de seu próprio desejo. Realiza, portanto, a máxima lacaniana:

“Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo”. (Jacques Lacan, Seminário 7 – A ética da psicanálise)

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BIBLIOGRAFIA:

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standart brasileira. Vols. IV e V. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

ZIZEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1996.



[1] Como diz o conceito, formação de reação, ou seja, transformar algo em seu contrário.

2 comentários:

  1. Yanco, excelente discurso sobre este filme que aborda um tema proposto anteriormente por Freud. Sua exposição trouxe a mim maior clareza com relação aos sonhos e a discussão de Freud. Parabéns!

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  2. Parabéns, ótima postagem, bem elucidativa. Ao ver o filme na faculdade eu imaginei que em perspectiva psicanalítica séria algo no gênero, de o Cobb estar sonhando o tempo inteiro.

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