Sobre o objetivo deste blog.

Os textos a serem postados aqui neste blog se referirão sobremodo ao campo da clínica (da psicoterapia e da técnica) e suas interfaces, tais quais, a arte (literatura e cinema) e o social (política e subjetividade). O objetivo deste blog é servir como um meio de informação acerca da relevância e viabilidade do processo psicoterápico, bem como levar à reflexão acerca da contemporaneidade através do arcabouço teórico psicanalítico.

sábado, 11 de setembro de 2010

Problematização moral e experiência ética na clínica psicanalítica.



Houve em Freud a percepção da dimensão própria em que a ação humana se desenrola, e não se deve ver apenas, na aparência de um ideal de reducionismo mecanista que aparece no Entwurf, a compensação, a contrapartida descoberta freudiana dos fatos da neurose que é, desde o princípio, percebida na dimensão ética em que efetivamente se situa. O que no-lo mostra é que o conflito se encontra aí em primeiro plano e que desde o início o conflito é, vamos dizê-lo, massivamente de ordem moral.

Jacques Lacan, Seminário 7: A ética da psicanálise.

Um dos grandes gestos de Lacan foi o de ter reativado a questão da ética no interior da psicanálise. Dentre as várias motivações subjacentes dessa retomada da ética na prática clínica, do seu papel e de sua função primordial na experiência que se dá numa análise, está indubitavelmente o contexto institucional-político da psicanálise americana. A demasiada atenção e preponderância nos aspectos técnicos da obra de Freud, cujas reverberações estavam também numa certa leitura metapsicológica reduzida aos mecanismos de defesa e a função mediadora do ego entre o superego e o id, faziam com que a psicanálise finalmente se amansasse depois dos anos de turbulências. Era como se finalmente a psicanálise se visse reduzida a uma psicologia, ou uma abordagem psicológica dentre outras. É muito compreensível que, tal qual um peixe fora do aquário se desespera diante da morte iminente, a psicanálise colocada no mesmo tabuleiro de outras psicologicas – cujas peças em jogo são a sanidade mental, a saúde para o trabalho, o tornar as pessoas melhores, mais felizes e mais úteis, dentre outros movimentos dentro desse mesmo escopo geral de “melhoramento” ou “maior adaptação”, ou, ainda, “auto-realização” – não sobrevive, uma vez que perde seu conteúdo crítico, sua proposta singular de cuidado.

É comum que nas universidades atualmente, meio estranho à psicanálise, vale lembrar, outras abordagens psicoterapêuticas soem mais eficazes, mais rápidas, mais práticas e de resolução imediata. O artifício retórico usado é simples: ao criticar o outro, convém estabelecermos nós mesmos nossos critérios e acusar o outro de não se adequar a eles. Assim como seria desonestidade intelectual um psicanalista dizer a um humanista de matriz maslowiana que o maior defeito de sua abordagem não é considerar a dimensão inconsciente do psiquismo (propriedade singular à própria psicoterapia de base psicanalítica), também o é um terapeuta cognitivo-comportamental acusar a psicanálise de ultrapassada, lenta e pouco diretiva. A questão que esse tipo de interpelação esconde propositalmente é: de onde se está retirando a autoridade suficiente para questionar uma outra abordagem com tamanha propriedade? No fim das contas, para variar, o que se tem não é uma superioridade epistemológica mas sim um conjunto de forças institucionais e políticas. Estas sim responsáveis, em última instância, pelo maior vigor de algumas abordagens e menor de outras.

Não é preciso dizer que algo se perde no bojo desse processo. No fim das contas, o critério decisivo é a maior adaptação às exigências mercadológicas contemporâneas. Nos planos de saúde, ou mesmo nas iniciativas particulares dos pacientes, há um certo afã pela solução rápida e eficaz. Certas abordagens inclusive se inscrevem nesse movimento e se montaram de tal modo que essas exigências fazem parte de seu escopo técnico e teórico. Nos últimos trinta anos, a psicanálise não se colocou alheia a esse movimento de aceleração da psicoterapia, vide como exemplos as articulações da chamada psicoterapia breve. Contudo, não preciso esconder que a psicanálise é, no mínimo, reticente a esta atual moda da instantaneidade do cuidado consigo mesmo. O problema não é que a psicanálise seja essencialmente demorada (pegue-se como exemplo os casos do próprio Freud), mas sim que ela suspeita de toda codificação temporal a partir da cronologia. Uma das pressuposições básicas de Freud, de que o inconsciente é atemporal, introduz na experiência analítica o advento de um outro tempo, não cronológico. Isso tem sido falsamente entendido como uma recusa da psicanálise em acelerar o seu processo de análise. O que está em jogo é a proposta de uma clínica ancorada numa experiência moral e numa problematização ética. Clínica esta que, como se pode ver, não pode fazer do tempo cronológico um critério do tratamento. O que não significa, bem entendido, a exigência de que uma análise dure anos. Significa somente que há uma recusa subjacente à proposta psicanalítica de se tomar o tempo cronológico como critério para alguma intervenção na psicoterapia. Ou seja, para resumir esse ponto, não é que um psicanalista se oponha a acelerar uma análise, é simplesmente que ele não pode fazê-lo, não é algo que está sob seu domínio, nem técnico nem ético.

A técnica em psicanálise, a meu ver, está muito mais próxima da discussão grega entre tékhne e poiesis, muito longe, portanto, dessa discussão de uma tecnologia psicológica a ser ensinada padronizadamente e a ser aplicada como se a clínica fosse um laboratório. Em certa medida, a técnica psicanalítica é uma poíesis e não uma tékhne. Vejamos o motivo: a tékhne, cuja essência é a hegemônica no domínio daquilo que se entende por 'técnica', pressupõe um ofício, uma habilidade para fabricar, construir ou compor alguma coisa. A tékhne é como uma profissão, por exemplo, o arquiteto que faz a casa se utiliza da tékhne. Sempre que está em jogo a reprodução prática de um saber adquirido em construtos que podem ser fielmente repetidos estamos falando de uma tékhne. Em certa medida, os cursos de psicologia formam técnicos da dimensão psicológica dos sujeitos, no sentido de que a formação acadêmica hoje hegemônica privilegia a tékhne. Com algumas abordagens que entendem com maior importância a questão dos testes psicológicos e de princípios ordenadores da prática clínica, essa tékhne basta e é imprescindível. Porém, será que um aluno já está gabaritado a exercer psicanálise somente porque aprendeu o conjunto da tékhne psicanalítica? Por exemplo, estaria determinado aluno fazendo psicanálise quando sabe todos os conceitos técnicos fundamentais (tais quais a associação-livre, a interpretação, a atenção flutuante etc.) e os aplica sistematicamente ao âmbito clínico?

Para muitos não. Esses muitos colocam como condição de possibilidade para o ofício de psicanalista a questão de passar por uma análise didática ou pessoal. Só após experienciar na própria carne a travessia complexa da experiência clínica psicanalítica alguém poderia se considerar credenciado a exercer psicanálise. Eu não gostaria de entrar exatamente nessa discussão, mas me parece que essa obrigatoriedade da análise pessoal, como um dos tripés fundamentais do psicanalista, junto com a formação e a supervisão, também privilegia uma certa noção da psicanálise como tékhne. Ou seja, pressupõe-se que um certo caminhar garante alguma coisa, quer dizer, que todo aquele que passa pela clínica está de fato fazendo análise pessoal, que todo aquele aluno que se propõe a estar defronte um analista está, de fato, experienciando alguma coisa que o tornará enfim psicanalista. Será possível garantir mesmo isso? Se não é, por que se enfatizar com tanta veemência a análise pessoal como condição de possibilidade do exercício de psicanalisar? Ora, assim como não podemos de antemão dizer que um sujeito, pelo simples fatos de estar diante de nós, passará inevitavelmente pela experiência psicanalítica e, após algum tempo, estará enfim “curado” ou “modificado subjetivamente”, também não podemos concluir que um aluno passará de certeza pela experiência psicanalítica pelo simples fato de se submeter obrigatoriamente, como pré-requisito de sua formação, a uma análise. O que me parece fundamental é defender que não há psicanalista se não houver experiência clínica, independentemente da posição de paciente ou de analista, uma vez que não há divisão sólida na modalidade experiencial que se constrói numa análise. Em toda análise psicanalítica não é só o paciente que se modifica, mas também o próprio analista. É essa abertura sem precedentes, esse espaço líquido do inconsciente que transborda e necessariamente molha todo o enquadre, que me parece fundamental para uma práxis psicanalítica e a qual, segundo me parece, essa obrigatoriedade de passar como paciente obstaculiza, enfatizando o caráter puramente técnico (tékhne) da psicanálise. E esse modo específico de experiência é possível porque a psicanálise não é somente uma tékhne mas antes de tudo uma poíesis.

A poíesis, assim como a tékhne, implica a fabricação de algo. Porém há uma diferença substancial: para a poíesis a implicação é de criar algo novo, é o domínio de como realizar algo que ainda não foi feito, enquanto que para a tékhne a questão é sempre de reproduzir algo que já se sabe. A distinção, portanto, e mais fundamental para essa discussão que estou querendo propor, é que a poíesis é sempre uma prática, nunca é algo adquirido definitivamente (nem mesmo uma experiência na própria carne pode ensinar a um sujeito como criar algo novo), enquanto que a tékhne é sempre algo adquirido como instrumento possibilitador da repetição de um artefato tecnicamente aprendido. Se é a técnica, o saber como fazer em variadas situações um determinado resultado esperado, o pilar essencial da tékhne, qual seria o da poíesis? Minha proposta aqui é que o pilar fundamental da experiência psicanalítica é a problematização ética.

Esse deslocamento da técnica psicanalítica, através da proposição de que a psicanálise é mais uma poíesis que uma tékhne, contribui para resgatar uma dimensão propriamente moral da psicanálise e de como sua função é problematizá-la através da ética. Vou pegar como exemplo a histeria. Uma modificação básica realizada por Freud com relação à psicopatologia vigente foi a de procurar fundar as neuroses não pela semiologia, isto é, por seus sinais e sintomas, mas sim pela etiologia metapsicológica, ou seja, pelo funcionamento psíquico. Assim, por exemplo, segundo uma leitura psicanalítica recorrente e hoje em pleno vigor, a neurose não se define pela paralisia dos membros, mas pela conversão, que é o mecanismo que a produz, a sua condição de possibilidade enquanto sintoma. Assim, o sintoma não é mais do que a manifestação de um conflito inconsciente. A atenção deve voltar-se, portanto, não tanto para a espetacularidade dos sintomas histéricos, mas para o seu silencioso dispositivo psíquico. Trata-se, de fato, de um deslocamento fundante da psicanálise enquanto método de investigação do psiquismo humano.

No entanto, há algo mais em jogo. A histeria sempre envolveu, em Freud, a questão da sexualidade e do recalque, quer dizer, das aspirações e desejos que são contrários à moral. A textura dos desejos inconscientes e das instâncias recalcadoras é a experiência moral. O recalque surge como garantidor da ação moral, ainda que o sujeito, não podendo agir moralmente, paralise-se. O que vale, numa situação de paralisia, é que a moral se fez presente até mesmo sob a integridade do sujeito. O mesmo podemos dizer na questão da neurose obsessiva, onde existe os problemas da culpa, da ambivalência amor/ódio, todos problemas essencialmente morais. Não é por outro motivo que a ideia de um supereu sádico, mais próximo de um carrasco que tortura o sujeito sem ele saber o motivo do que de um juiz ou censor que lhe dita ordens justificadas e superiores, aparece em Freud como uma problematização daquilo que se mostra como progressista cujo objetivo é levar o sujeito a um alto padrão de sociabilidade. No Mal-estar da civilização, uma das obras mais críticas de Freud onde civilização e aperfeiçoamento humano estão dissociados, essa ordem superêuica não passa de uma ordem obscena, cujo objetivo é açoitar o psiquismo do sujeito.

Parece-me ser essa experiência moral que compele o sujeito a entrar em análise. Entendamos moral aqui em seu sentido foucaultiano, vide sua introdução geral de Uso dos prazeres (segundo volume da História da Sexualidade), isto é, como um código, como comportamento real dos indivíduos em sua relação com as regras e valores que lhe são propostos. A moral designa a maneira pela qual os sujeitos se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta, pela qual obedecem ou resistem a uma interdição ou prescrição. A moral é sempre uma referência a um sistema prescritivo. O sofrimento psíquico surge quando há uma dissonância entre essa prescrição e a conduta do sujeito. A culpa, por exemplo, pode surgir pelo não atendimento de uma ordem superêuica: deves amar o seu namorado e não o vizinho gostoso, deves ser médico e não um artista. Há, em jogo, uma prescrição e uma conduta que teima em não estar de acordo. E, ainda que a conduta esteja de acordo, que se seja médico em vez de artista, o sofrimento zumbe de dentro, tal qual uma roupa pequena demais que está sempre a incomodar porque não se consegue, apesar das tentativas em vão, perder peso suficiente. A questão que impele o sujeito à análise pode ser descrita, em muitos casos, como: “o que eu faço comigo mesmo na medida em que não consigo seguir o código prescritivo que sei que devo seguir?”. A entrada do sujeito na análise, corporal e psiquicamente, dá-se através dessa primeira experimentação moral: “como devo me consttiuir sem me referenciar no código moral inquestionável que tentei me submeter durante estes anos? Como me constituir como sujeito moral se essa moral me parece impossível?”.

É essa procura por uma nova construção de si mesmo, por uma prática de si, que o paciente parece buscar quando enfim se predispõe a experienciar a análise. Parece-me que certos conceitos foucaultianos como “substância ética” e “modos de sujeição” estão claramente em jogo numa análise e forçam a psicanálise a não ser mais uma técnica (tékhne) psicológica dentre outras. A afirmação da clínica psicanalítica como uma experiência moral que se dá a partir de uma problematização ética requer a recusa de que a análise assuma a forma de indução de pessoas a aceitarem princípios ou regras independentemente de sua experiência delas mesmas. Poratnto, a meta da psicanálise não é transformar sujeitos em cidadãos mais virtuosos ou em trabalhadores mais produtivos. Não se trata, em psicanálise, de garantir que atos individuais contribuam para o bem de todos ou de determinação principiológica dos quais não se pode prescindir.

A ética da psicanálise é uma ética sem Bem. Ou seja, uma ética contingente, onde a felicidade não advém de um padrão ordenador da técnica (tékhne), mas de uma mobilização na produção de algo que ali ainda não adveio. Não há um modelo para a análise que atuasse como uma espécie de manual ou guia infalível. Em certa medida, todas as intervenções são mais éticas (poiéticas) e não necessariamente técnicas.



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