Sobre o objetivo deste blog.

Os textos a serem postados aqui neste blog se referirão sobremodo ao campo da clínica (da psicoterapia e da técnica) e suas interfaces, tais quais, a arte (literatura e cinema) e o social (política e subjetividade). O objetivo deste blog é servir como um meio de informação acerca da relevância e viabilidade do processo psicoterápico, bem como levar à reflexão acerca da contemporaneidade através do arcabouço teórico psicanalítico.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Algumas respostas rápidas sobre psicologia e psicanálise.

Alguns alunos de psicologia e da área de saúde me procuraram para responder um questionário semelhante. Disponibilizo por aqui, talvez tenha alguma serventia também para quem lê esse blog.

Questões sobre psicologia e saúde


1. O que é a psicologia?

A psicologia pode ter diversas definições a depender da abordagem que se utiliza. Pode ser vista, por exemplo, como um estudo do comportamento humano, como uma análise das motivações ou como uma investigação acerca do inconsciente. Essas são as definições das chamadas “três grandes forças da psicologia”: behaviorismo (comportamentalismo), humanismo e psicanálise, respectivamente. É por isso que diversos autores, como Ana Maria Bock e Luís Cláudio Figueiredo, afirmam a existências de psicologias (com “s” no final para sinalizar a pluralidade desse saber). No entanto, para dar uma conceituação ampla que dê conta da profissão de psicólogo, pode-se dizer que a psicologia é o estudo do psiquismo em suas diversas dimensões: comportamental, motivacional, inconsciente etc.

2. Qual a diferença entre psicologia e psiquiatria?

Embora ambas tenham se constituído enquanto “ciência independente” com seus próprios métodos, técnicas, objetivos e formas de intervenção, psicologia e psiquiatria frequentemente possuem objetos híbridos, em comum. Por exemplo, a questão da loucura e das perversões é um ponto de junção entre psicologia e psiquiatria. No que se refere à psicanálise, sua diferença está na ênfase dada não aos sinais e sintomas (embora não os desconsidere, apenas não é o centro de sua análise), mas à etiologia psíquica. Vou pegar como exemplo a histeria. Uma modificação básica realizada por Freud com relação à psiquiatria vigente foi a de procurar fundar as neuroses não pela semiologia, isto é, por seus sinais e sintomas, mas sim pela etiologia metapsicológica, ou seja, pelo funcionamento psíquico, pela psicogênese do sintoma. Assim, por exemplo, a neurose não se define pela paralisia dos membros, mas pela conversão, que é o mecanismo que a produz, a sua condição de possibilidade enquanto sintoma. Assim, o sintoma não é mais do que a manifestação de um conflito inconsciente. A atenção deve voltar-se, portanto, não tanto para a espetacularidade dos sintomas histéricos, mas para o seu silencioso dispositivo psíquico. Trata-se, de fato, de um deslocamento fundante da psicanálise enquanto método de investigação do psiquismo humano.

3. O que são linhas as teóricas da psicologia e qual é a função delas para o trabalho do psicologo?

Linhas teóricas são um conjunto de características que englobam um tripé: conceito de sujeito (as relações entre normal e patológico, além de um certo entendimento sobre o sofrimento psíquico) baseada numa teoria, instrumentos de intervenção alicerçados numa técnica que os organiza e os dá sentido e uma psicoterapia que nada mais é do que uma aplicação da teoria e da técnica num certo espaço delimitado, como o consultório, o hospital, a instituição etc. A função das linhas teóricas, ou abordagens da psicologia, é dar consistência à atuação e intervenção do psicólogo além de auxiliá-lo na compreensão do sujeito humano. A abordagem é que garante eficácia às ações do psicólogo, são elas que garantem a produção de resultados. Caso o psicólogo oscile entre uma abordagem e outra, numa mistura eclética, não estará somente pecando no que se refere à ética profissional, mas também pondo em risco a integridade psíquica daqueles que solicitam seu serviço.

4. Quais os principais campos de atuação da psicologia e como é o trabalho da psicologia nestes âmbitos?

Sem dúvida, atualmente o campo da saúde mental é um dos principais campos de atuação do psicólogo. Os recentes avanços provocados pela Reforma Psiquiátrica fizeram surgir diversas instituições, das quais os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) são a expressão mais fiel. Entretanto, pode-se inscrever o campo da saúde mental ao campo da saúde coletiva. Neste sentido, a saúde se coloca hoje como uma alternativa consolidada: postos de saúde, CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) etc. Tais trabalhos provocam uma “desespercialização” do psicólogo, o qual não pode mais ter um paradigma de atuação rígido pautado apenas no consultório, devendo trabalhar em equipe, de maneira multidisciplinar (e transdisciplinar, quando possível), realizando, inclusive, visitas domiciliares, intervenções fora da clínica. Deste modo, o trabalho da psicologia no campo da saúde impele o profissional de psicologia a se renovar e se capacitar.

5. O que é a psicologia da saúde? E qual sua importância na sociedade atual?

Psicologia da saúde é o nome dado ao campo de atuação do psicólogo naquilo que se refere à saúde coletiva. Em certa medida, toda psicologia é uma psicologia da saúde, uma vez que toda intervenção do psicólogo visa dar conta de um estado de doença. Todo psicólogo está, portanto, inevitavelmente em contato com a (psico)patologia, esteja ele em seu consultório ou fora dele. Num sentido técnico e profissional, psicologia da saúde é o nome dado ao ramo no qual o psicólogo está implicado na produção de diagnósticos, na identificação da etiologia do mal-estar, na manutenção de uma qualidade de vida. Isso pode acontecer, por exemplo, na atuação do psicólogo num hospital. Sua importância hoje é imensa. Num mundo onde os psicotrópicos dispensam o trabalho subjetivo do sujeito com seu próprio sofrimento (vide o fato de que o Rivotril foi o segundo remédio mais vendido no Brasil em 2008, ficando na frente de outros como Neosaldina, Tylenol e Hipoglós!), o resgate que o psicólogo pode fazer com relação ao enfrentamento do sujeito diante de seu próprio mal-estar e seu apoderamento de seu destino e de sua vida é uma tarefa indispensável atualmente. Sem um bom trabalho da psicologia da saúde, podemos assistir, nos próximos anos, a intervenções medicalizantes que não visem o bem-estar do sujeito, mas somente a supressão de seus sintomas.

6. Como é o trabalho psicológico com pacientes psicóticos?

Numa conceituação primária e básica, psicose é o nome dado a um estado mental onde inexiste um bom trabalho psíquico de diferenciação entre realidade externa e realidade interna, o que desemboca, nos casos mais graves, na existência de ilusões e delírios com relação ao mundo externo. Psicótico é aquele, logo, que confunde realidade e ficção, além de deixar com que seus desejos internos, projetados na realidade externa, passem-se de realidades incontestáveis. É assim, por exemplo, que um psicótico pode considerar estar sendo perseguido por forças conspiratórias ou que seu pai, na verdade, nunca desejou seu nascimento e procura durante toda a sua vida boicotá-lo porque ele é muito melhor que seu pai (o psicótico sente o peso dessas convicções como se fossem verdades incontestáveis, como se, de fato, seu pai ficasse planejando por horas como pode vir a dificultar a vida do filho). O trabalho com psicóticos é, assim, muito árduo, pois não se pode, tal qual se faz com os neuróticos (aqueles cujo conflito não é do eu com a realidade externa, mas sim do eu com a instância censora ou com os desejos reprimidos [conflitos do tipo: “amo meu marido mas tenho tesão pelo meu colega de trabalho: devo trair ou manter meu relacionamento? Ou será que devo trair e esconder? Ou será que devo manifestar abertamente minha vontade de traição? Ou será que meu marido me trai e por isso eu sinto o desejo de trai-lo?]). O psicoterapeuta se vê muitas vezes como alvo das projeções negativas do paciente, que projeta sobre o psicoterapeuta seus sentimentos negativos, suas ansiedades primitivas de perseguição e aniquilação. Levando em consideração que a psicose está em íntima relação com a esquizofrenia, etimologicamente “mente dividida” ou “em pedaços”, o trabalho do psicoterapeuta é muitas vezes recolher esse material despedaçado projetado pelo psicótico e devolvê-lo de maneira coerente e harmônica. O psicoterapeuta, muitas vezes, empresta seu aparelho psíquico para realizar o trabalho de ordenação da realidade para o paciente, o qual rejeita o real como uma ameaça iminente. Para finalizar, é preciso dizer que, ao contrário do que se pensou durante décadas, o psicótico é analisável, o que significa dizer que ele pode passar por um trabalho psicoterapêutico e conseguir avanços consideráveis em sua condição de sujeito. Trata-se, portanto, não de entender o psicótico como um “doidinho incapaz” mas como um sujeito que luta para se haver com seu próprio desejo. O que o psicótico faz, a maneira como ele atua seu sofrimento psíquico, é confiar que o terapeuta exerça funções que ele ejetou, isto é, de assimilar a realidade de uma maneira minimamente estável e harmônica. Autores que defendem esse ponto de vista são Alfred Bion e Jacques Lacan. São autores imprescindíveis para o trabalho com a psicose. Além deles, um livro introdutório é o “Esquizofrenia”, de Alexandra Sterian, da coleção “Clínica Psicanalítica”, editada pela Casa do Psicólogo.

7. Quais os assuntos principais da psicologia que um profissional de saúde deve conhecer?

Reforma Psiquiátrica (sobretudo as contribuições da Análise Institucional), drogadição (dependência tanto dos psicofármacos quanto das drogas ditas ilícitas), psicopatologia (principalmente as contribuições da psicodinâmica) e políticas de saúde (entendimento de onde surgiram e como se consolidaram os atuais modos de cuidado materializados em instituições como CAPS, CRAS, Postos de Saúde, dentre outros).

8. Como um psicologo,o que aconselharia para um profissional de saúde ter uma formação integral em um mundo de especializações e sub especializações?

Nós passamos o tempo inteiro de graudação, cinco anos, ouvindo de nossos professores que não damos conselhos e, depois de formados, as pessoas sempre nos pedem conselhos (risos). Em todo caso, acredito que recuperar com seriedade as áreas das “ciências humanas” é fundamental. Ou seja, ter uma formação que passe séria e atenciosamente pela filosofia, antropologia e sociologia me parece ser uma forma de escapar aos especialismos de hoje em dia. Esses saberes, tais quais a neurologia e fisiologia, tem muito a nos dizer porque guardam, bem mais do que estas duas citadas anteriormente, um teor crítico fundamental para uma prática ética do profissional em saúde. O profisisonal de saúde não é somente um técnico que aplica aquilo que aprendeu de forma mecânica, é um promotor de saúde, alguém que constrói subjetividades. Não é somente alguém que “melhora” ou “cura” um sujeito, mas alguém que mostra a um sujeito que está sofrendo novas formas de lidar consigo mesmo e com sua vida que podem fazer dele um sujeito com maiores capacidades de ação. Não é bem um conselho que dou, pois não aprendi a fazer isso. É apenas uma dica: levem mais a sério a filosofia, a antropologia e a sociologia. Elas tem muito, mas muito, a nos dizer.

Questões sobre a abordagem psicanalítica.

1. Quais os conceitos centrais da psicanálise?

Isso depende de qual escola dentro da psicanálise que estamos falando. Para os lacanianos (adeptos de Jacques Lacan), por exemplo, os conceitos centrais são os de desejo, gozo, objeto a, outro, linguagem etc.; para os kleinianos (adeptos de Melanie Klein), os conceitos centrais são os de posição – depressiva ou paranóide –, defesa e reparação, supereu sádico, ansiedade primitiva e fantasia etc.; para os ferenczianos (adeptos de Sándor Ferenczi) a questão da hospitalidade, empatia, trauma e constituição subjetiva etc., são centrais; para os adeptos de André Green, as questões de narcisismo de vida ou de morte, da mãe morta, da negatividade, da clínica do vazio, estes são os conceitos centrais. No entanto, em que pesem essas diferenças internas, ao menos no que se refere a esses autores (excetuando-se, portanto, a psicanálise dita do ego) a meu ver, o que unifica os autores que se defendem enquanto “psicanalistas” são a centralidade da pulsão e do inconsciente no conceito de sujeito.

2. Como é a compreensão de Freud do psiquismo?

É um consenso dentre os autores (como Jean Bergeret) dividir essa compreensão freudiana do psiquismo de três formas: uma dinâmica, uma tópica e uma economia. Freud entende, portanto, o psiquismo a partir de três registros: o da economia se refere às energias ligadas e desligadas, às maneiras de dar vazão à satisfação, aos princípios de prazer e de realidade; o da dinâmica se refere a como essas energias, ligadas ou não, são representadas, são codificadas, são canalizadas a partir da ação da censura, a dinâmica se refere, portanto, às relações de forças que existem entre a satisfação do desejo e seu adiamento devido a instâncias sociais [por exemplo, uma jovem mulher pode estar encantada por alguém que não é seu marido, embora haja uma demanda de satisfação pulsional intensa, dinamicamente pode encontrar outras formas de conter ou de dar vazão a esse desejo. Ainda que essa forma de dar vazão apareça de uma maneira que não tem nada a ver com o desejo em si, como no exemplo de uma paralisia de um membro (na histeria clássica) ou de uma dor no corpo ou de cabeça (conversão), trata-se de uma formação dinâmica. Ou seja, o sintoma é a expressão de um conflito dinâmico entre forças que querem a satisfação e outras forças que impõem uma espera. Essa negociação entre desejo e realidade não se dá em vão, existe um preço pago para isso, pode ser a culpa ou qualquer outro sintoma]. A tópica, por fim, refere-se às instâncias em jogo no psiquismo humano, tais quais o supereu (representante das normas sociais), o isso (reservatório de pulsões) e o eu (instância psíquica cuja função é manter o contato com a realidade e satisfazer as pulsões de uma maneira aceitável). A importância da tópica é para a caracterização da neurose, por exemplo, como conflito entre o superego e o ego diante do id. Ou seja, um conflito que se estabelece na censura com relação à satisfação do desejo (superego), na demanda por satisfação imediata do desejo (id) e na negociação possível sem um custo alto demais para a integridade psíquica (eu).

3. O que é a transferência?

Existem vários modelos para a transferência e seu manejo, tanto quanto sua função dentro da análise, varia nas escolas de psicanálise. Vamos pegar somente Freud para responder essas duas questões sobre transferência. No capítulo IV dos Esudos Sobre a Histeria, de 1893, um dos primeiros escritos de Freud, a transferência é vista como uma falsa ligação que se produz entre analista e analisando. Assim, certos desejos do paciente podem ser dirigidos ao analista como se este fosse o objeto desejado. Em 1905, durante o atendimento de uma paciente que ficou conhecida sob o título de o “caso Dora”, Freud consolida ainda mais a noção de transferência. Afirma que as transferências são reedições, reprodução das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, despertam-se e tornam-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do psicoterapeuta. As transferências são, por assim dizer, toda uma série de experiências psíquicas prévias que são revividas, não como algo do passado, mas como um vínculo atual com o psicoterapeuta. Trata-se, então, de reimpressões e reedições de conteúdos. Apesar de ainda existirem outras roupagens para o conceito de transferência, o núcleo central dele é a idéia de que existe uma atuação da fantasia do paciente durante a análise. Em vez de ser um obstáculo ao tratamento, a transferência é sua própria condição de possibilidade.

4. O que é a contransferência?

Há, pelo menos, dois eventos históricos que devemos ter em mente se quisermos entender a preocupação freudiana com a contratransferência. O primeiro é o relacionamento problemático e genuinamente afetivo entre Joseph Breuer e Anna O., resultando praticamente num enamoramento enrustido e secreto; o segundo é o caso amoroso que se desenrolou entre Jung e uma paciente russa sua chamada Sabina Spielrein. Esses dois fatores, sobretudo este último, ocorrido entre 1904 e 1911, período no qual Jung e Freud trocaram várias cartas a esse respeito, são os panos de fundo da preocupação freudiana com a contratransferência. Afinal de contas, se a transferência é a condição de possibilidade da psicoterapia psicanalítica, o que fazer com o perigo sempre constante de não só o paciente, mas também o analista produzir uma “falsa ligação” entre ele e o paciente? Ou, o que é pior ainda, o que impede que ele use o paciente como suporte de suas próprias fantasias?

A contratransferência, em Freud, diz respeito diretamente ao manejo da transferência. Num texto publicado em 1915, “Observações sobre o amor transferencial”, onde, já em seu início, Freud adverte que o psicanalista deve estar atento contra a tendência da contratransferência que surge quando o paciente lhe transfere suas fantasias. Ou seja, supondo que um paciente se apaixone por seu analista, este não deve atribuir essa paixão à sua pessoa ou suas características, mas sim à transferência do paciente, somente. Contratransferir, neste sentido, é algo como produzir uma resposta que, em vez de problematizar a transferência, fortalece-a ainda mais. Enquanto que, para algumas pacientes neuróticas, por exemplo, apaixonar-se pelo analista é quase que um destino inelutável, para os analistas não se deixar apaixonar é uma regra geral para todo e qualquer paciente. A esta altura, não é a transferência que tem que ser controlada e estudada, mas a própria contratransferência, a qual se, por um lado, constitui-se como um material importantíssimo no progresso da análise, por outro lado, é um perigo constante de o analista se perder em suas próprias paixões e fantasias, prejudicando totalmente a análise.

5. Como se explica o sonho pela psicanálise?

Um filme recente de Christopher Nolan, estrelado por Leonardo DiCaprio, chamado “A Origem”, traz algumas discussões valiosas para a noção de sonho na psicanálise. Vale a pena assisti-lo sob a ótica freudiana. O sonho tem uma importância fundamental para a psicanálise, uma vez que se coloca como via de acesso ao inconsciente, como uma formação inconsciente. Em “A Interpretação dos Sonhos”, esse fenômeno vai dar espaço para o surgimento da primeira tópica freudiana (inconsciente/pré-consciente/consciente), vide o capítulo VII. É importante dizer que, para Freud, o importante não é o sonho em si (seu conteúdo latente), mas o seu relato (seu conteúdo manifesto). Assim, não há um sentido original no sonho, mas sempre uma interpretação que visa constituir sentido ao desejo que, por um trabalho específico do psiquismo, transformou-se em sonho. Nisso reside a maior tese freudiana sobre o sonho: “todo sonho é a realização de um desejo”. O que não significa dizer, de forma alguma, que quando uma mulher casada sonha traindo seu marido que ela quer de fato o fazer. Pode ser que sim, pode ser que não. O que realmente importa é o que é que a paciente faz com esse sonho: como ela o conta, de que forma ele a mobiliza pulsionalmente. Todo sonho é motivado por um desejo, entendido como uma força pulsional intensiva que dá consistência ao sonho.

6. Qual a importância da sexualidade para a psicanálise?

A sexualidade possui uma importância fundamental para a psicanálise. É nela que Freud encontra o alicerce fundamental para sua noção de sujeito como aquele que busca constantemente o prazer. A sexualidade atua, então, como uma espécie de prova empírica do sujeito pulsional freudiano. Porém, é preciso levar em consideração que a sexualidade, em Freud, tem uma outra conotação, bem diferente da usual,, e ele apenas se apóia na sexualidade como se entende no senso comum para tornar clara sua noção de sujeito desejante. A sexualidade, para a psicanálise, não é instintiva, não tem objeto definido, não é genital mas sim heterógena e cuja dinâmica é pulsional. Sendo o alvo da pulsão variável e sua meta sempre a satisfação, a sexualidade, para Freud, está fora do domínio da reprodução (uma vez que seu objetivo é a obtenção de prazer e não a reprodução da espécie) e dentro do terreno da busca pelo prazer. Freud, como muitos outros que o antecederam, buscou retirar o discurso normativo sobre a sexualidade em prol de um saber que viesse a restituir o lugar do sexual como uma ação propriamente humana de busca incessante pelo prazer. Daí decorre, por exemplo, a recusa pela discriminação dos homossexuais, para citar um exemplo polêmico dentro das instituições psicanalíticas, as quais até bem pouco tempo atrás não aceitavam que homossexuais fossem analistas (a esse respeito, é bom conferir o artigo de Elisabeth Roudinesco chamado “Psicanálise e homossexualidade”, em seu livro “Em defesa da psicanálise”, editado pela Jorge Zahar). Como se vê, a sexualidade, para a psicanálise, tem uma importância teórica e também política.

7. Como se explica o sintoma na psicanálise e qual a visão dessa abordagem de psicopatologia?

Uma modificação básica realizada por Freud com relação à psicopatologia vigente foi a de procurar fundar as neuroses não pela semiologia, isto é, por seus sinais e sintomas, mas sim pela etiologia metapsicológica, ou seja, pelo funcionamento psíquico, por sua psicogênese, por assim dizer. Desta forma, por exemplo, a neurose não se define pela paralisia dos membros, mas pela conversão, que é o mecanismo que a produz, a sua condição de possibilidade enquanto sintoma. Logo, o sintoma não é mais do que a manifestação de um conflito inconsciente. A atenção deve voltar-se, portanto, não tanto para a espetacularidade dos sintomas histéricos, sua descrição e categorização,, mas para o seu silencioso dispositivo psíquico, o pano de fundo que constitui o solo do qual emergem os sintomas. Trata-se, de fato, de um deslocamento fundante da psicanálise enquanto método de investigação do psiquismo humano.

8. Como trabalha um psicanalista?

As perguntas mais simples e objetivas são sempre as mais difíceis de se responder. Vou fazer um recorte arbitrário relacionado ao trabalho clínico do psicanalista. Portanto, vou tentar esboçar os contornos gerais de como trabalhar um psicanalista na clínica, ou seja, na psicoterapia de base psicanalítica. Começo dizendo como não se trabalha um psicanalista na clínica: um psicanalista nunca é um padre, ele nunca vai propor a um paciente uma série de rituais que servem como penitências diante de um ato reprovável (ainda que esses rituais sejam travestidos de ‘homeworks’ ou qualquer trabalho do paciente de auto-policiamento); um psicanalista nunca é um cartomante, de quem o paciente espera que se decifrem instantaneamente seus problemas e suas soluções, além de seu futuro promissor próximo que virá necessariamente a partir de certas regras de conduta estabelecidas dali para frente; um psicanalista nunca é um grande amigo, de quem o paciente espera o ombro para choros e lamentações que provocam conforto e alívio após um desabafo.

Embora seja verdade que um psicanalista não faz nada disso, não é tão verdade que a psicoterapia não possa dar ao sujeito uma certa esperança com relação ao futuro, que o sujeito possa, a partir de uma auto-observação, causar, em si mesmo, uma modificação significativa e global de sua personalidade, ou ainda que a psicoterapia não absorva certos desabafos, angústias e ansiedades. A grande diferença, apesar dessas convergências pontuais, é que o psicanalista faz tudo isso não diante de um modelo pedagógico que visa transformar o sujeito a partir de um referencial maior, mas a partir de uma experiência singular a cada sujeito. É assim que, por exemplo, um psicanalista jamais vai dar uma de defensor de um Bem maior incontestável. No caso da jovem que sente desejo em trair seu marido, não convém ao psicanalista nem incentivá-la à traição em nome de uma lealdade com o próprio desejo, tampouco reprimir a paciente em nome da instituição familiar e do casamento. O modo como um psicanalista trabalharia nessa situação peculiar era o de possibilitar uma experiência singular do próprio sujeito, possibilitando o sujeito a se haver com seu próprio desejo e lidar com ele de uma forma que não há garantias seguras nem definitivas. O que o psicanalista faz é permitir que o sujeito se inscreva em sua própria história como aquele que a constrói e se implica com ela, sendo capaz de modificá-la constantemente. A clínica psicanalítica possui, assim, uma dimensão inevitavelmente trágica. O que significa tornar sempre presente o fato de que o sujeito, tal qual Édipo, jamais poderá fugir de seu destino, assim como não poderá fugir do seu passado e tampouco de seu presente. Sua existência enquanto sujeito é, para sempre, uma constante presentificação de seus desejos, conflitos e frustrações. É por isso que, se não podemos dizer que todos os sujeitos são capazes de entrar em análise, podemos dizer que, uma vez que o sujeito entra no trabalho de análise, jamais sai dele.

9. O que é importante para uma pessoa se tornar um psicanalista?

Acredito que três coisas são essenciais para alguém se tornar um psicanalista. A primeira é que o psicanalista tenha uma grande quota de energia livre para usar em sua atividade clínica, o que pressupõe uma espécie de “saúde mental do analista”. É imprescindível essa saúde para que o psicanalista consiga suportar (tanto no sentido de suportar o sofrimento do outro como de servir de suporte para o sofrimento do outro) a experiência que se dá na clínica. A segunda é que ele seja um filósofo no sentido grego do termo, ou seja, como um “amigo da sabedoria”. É imprescindível que um psicanalista seja alguém ávido por conhecimento, que seja capaz de compreender as outras abordagens (sem jamais recorrer a jargões e desqualificações), que seja capaz de transitar pelas ciências humanas (como antropologia e sociologia), que seja alguém com energia suficiente para ler Freud, Lacan, Klein, Dolto, Winnicot, Green, sem fazer do conhecimento uma arma de superioridade mas sim uma caixa de ferramentas para tecer uma clínica cada vez mais produtiva, inventiva. Portanto, que tenha uma mente saudável, com bastante energia livre para utilizar na clínica, e que seja alguém com sede de conhecimento, pois quanto mais conhecimento maior será o arsenal teórico, técnico e psicoterápico que se terá em mãos. A última importância, mas não menor do que as demais, talvez até a maior de todas, é que o psicanalista seja um sujeito ético. Em três dimensões específicas: a política-social, ou seja, o psicanalista jamais deve deixar de lado o fato de que a textura do sofrimento psíquico é uma determinada cultura que se organiza a partir de uma certa forma econômica e política; a teórica-epistemológica, que significa uma conduta sempre aberta e antidogmática como característica central para o avanço da psicanálise; e a filosófica-crítica, que impõe ao psicanalista sempre a problematização da moral (dos valores, das regras, dos interditos). Um psicanalista é sempre um sujeito ético porque é sempre um crítico. Ele nunca é um defensor acrítico do que existe, tampouco um representante das ordens sociais. Um psicanalista é um sujeito ético na medida em que está sempre ali onde as coisas estão aparentemente estáveis para dizer que essa estabilidade é ilusória e que tudo é mutável. E que, na verdade, não é a mudança, mas a permanência estável que produz mais estragos para o sujeito.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma breve nota sobre “A origem”, de Christopher Nolan: ou como não ceder ao próprio desejo.

Uma breve nota sobre “A origem”, de Christopher Nolan: ou para não esquecer uma lição psicanalítica fundamental sobre a relação entre sonho e realidade.

Escrevo esse texto para defender uma tese em certa medida simplória: o filme em questão (A Origem, de C. Nolan) traz de um aspecto fundamental da elaboração freudiana acerca dos sonhos, a saber: não sonhamos para fugir da realidade da qual vivenciamos quando estamos acordados, nós acordamos para não lidar com o desejo exposto a nós mesmos pelo trabalho do sonho. Portanto, a interpretação que proponho do filme é baseada na pressuposição de que seu protagonista, interpretado brilhantemente por Leonardo DiCaprio, está dormindo o tempo inteiro. Assim, pretendo utilizar o filme para elucidar uma questão freudiana fundamental acerca da relação entre fantasia e realidade, de modo defender que a fantasia não está subjugada à realidade, mas, pelo contrário, ela estrutura o nosso acesso ao real.

No aspecto mais simples da interpretação que intento lançar, poderia utilizar como exemplos o fato de que, ao contrário de outros personagens, Don Cobb, o protagonista interpretado por DiCaprio, jamais aparece morrendo factualmente. Levando-se em consideração que o ato de morrer ocupa na economia discursiva do filme um papel principal de acesso à realidade para além do sonho, é cabível entender que o fato de Don Cobb jamais morrer é porque ele jamais acorda. Aliás, não seria sua idéia delirante sobre como trafegar entre níveis de sonhos diferentes através de um empurrão que simule uma queda motivada por uma fobia tremenda de morrer dentro do sonho? Por fim, o fato de que seu amuleto (uma espécie de peão) roda sem ceder às leis do real (gravidade e inércia) sugere que suspeitemos estar diante de um belo sonho de Cobb. Outras cenas, tais quais a conversa esclarecedora com sua “ex-esposa” Mal onde ela o inquire diretamente sobre o fato de ele não estar querendo acordar, o que explicaria as perseguições paranóicas, pois, novamente segundo a economia discursiva do filme, quanto mais um sonhador tenta controlar a dinâmica do sonho mais ele é perseguido por projeções que tentarão matá-lo para acordá-lo.

Espero que este parágrafo anterior, basicamente uma defesa da viabilidade de minha interpretação, tenha sido o bastante e que se possa, a partir dele, começar de fato a reflexão. Pois bem, uma vez aceita a idéia de que estamos diante de uma narrativa em primeira pessoa e portanto assistindo as peripécias de Don Cobb em seus sonhos, a problemática passa a ser: como Cobb consegue, ao contrário de todos nós, manter-se num sonho por tempo indeterminado? Por que nós, diante de um sonho bom ou ruim, sempre acordamos e não conseguimos dominar nosso sonho a ponto de continuar dormindo? O que Cobb sacou e tornou possível?

No capítulo III da Interpretação dos Sonhos, Freud (1996, p. 157) lança uma questão que é trabalhada em A Origem: “Pode um sonho dizer-nos algo de novo sobre nossos processos psíquicos internos? Pode seu conteúdo corrigir opiniões que sustentamos durante o dia?”. Cobb subverte esse raciocínio freudiano na medida em que enseja entender como processos psíquicos internos que se sustenta durante o dia pode corrigir a gramática do sonho afim de prolongá-lo. Mas como ele é capaz de tamanha façanha? Proponho que releiamos Freud para compreender a façanha de Cobb.

Um dos objetivos de Freud não é se perguntar sobre o conteúdo verdadeiro do sonho enquanto tal, como se houvesse a possibilidade de uma narrativa fidedigna e última sobre tal fenômeno. Embora admita a possibilidade de que interpretações venham a dar, em certa medida, a verdade do sonho, isto é, demonstrar que tipo de desejo está em jogo, o objetivo freudiano é, por assim dizer, entender porque certos desejos assumem a forma de sonho. Como diz Zizek (1996, p. 297), “o entendimento teórico da forma dos sonhos não consiste em desvendar, a partir de seu conteúdo manifesto, seu ‘cerne oculto’, os pensamentos latentes do sonho; consiste na resposta à pergunta: por que os pensamentos latentes dos sonhos assumiram essa forma, por que foram transpostos para a forma de um sonho?”. Significa, portanto, um questionamento não do segredo por trás da forma, mas o segredo da própria forma.

A aposta freudiana é de restituir ao sonho a dignidade de fenômeno psíquico possuidor de uma certa lógica, regida sob a ordem do inconsciente. Quando o paciente está já desperto, emerso na experiência analítica, e conta como foi seu sonho, esse próprio ato de falar diz acerca de seu próprio desejo. Em Freud, é o questionamento do desejo do sujeito e não do conteúdo verdadeiro de seus sonhos que está em jogo. Diante de um relator de sonhos, um psicanalista se pergunta: por que esse desejo que aparece tão nitidamente na arrumação dessa narrativa assume a forma de um sonho aparentemente ilógico? A partir das interpretações que tem como alvo o desejo que assumiu uma forma específica pelo trabalho do sonho – e não o objetivo de dizer a verdade oculta por trás do próprio sonho – Freud intenta produzir efeitos clínicos diante de seu paciente agora acordado, desperto, consciente.

A façanha de Cobb está em subverter Freud. O sujeito, neste caso, não está acordado diante de um psicanalista contando seu sonho depois de tê-lo sonhado. Ele permanece sob o registro do sonho. As tentativas de Mal em acordar Cobb foram todas em vão, isso significa que não havia nenhuma possibilidade de mostrar a Cobb que ele permanecia dormindo e que toda sua história de que foi Mal que não suportou a realidade é apenas uma formação reativa[1] sua de que é ele próprio que não suporta a iminência de parar de sonhar? Utilizando toda a abertura artística provocada pelo filme, podemos apostar que uma última intervenção poderia ter sido feita por Mal. Intervenção esta que consistira em demonstrar a Cobb como ele próprio conseguiu subverter o sonho.

Para entender a “subversão onírica” de Cobb, temos de entender uma lição freudiana fundamental, a saber, de que o sonho é a realização de um desejo. De maneira simples, se sentimos vontade de urinar enquanto estamos em sono profundo, podemos trabalhar essa necessidade fisiológica de modo que ela ganhe, no sonho, a narrativa de uma bela cachoeira a céu aberto; se sentimos vontade de beber água enquanto dormimos, podemos, submetendo essa idéia a um trabalho inconsciente, termos a vivência onírica de que estamos bebendo um gigante copo d’água. E assim segue. Esses exemplos servem para demonstrar a primeira implicação dessa tese freudiana de que o sonho é a realização de um desejo, ou seja, sonhamos porque queremos continuar dormindo.

Isso não explica, contudo, o fato de que sonhos ruins aconteçam e nos façam acordar abruptamente. Como lidar com essa constatação? Entrando na última parte de minha argumentação, cito um sonho que Freud narra em seu fabuloso capítulo VII da Interpretação dos Sonhos:

As condições preliminares desse sonho-padrão foram as seguintes: um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e que a mortalha e um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles. (FREUD, 1996, p. 141)

Tem-se aí um exemplo de como um sonho pode impelir o sujeito a despertar-se. Nesse sonho, podemos continuar a idéia freudiana anterior de que talvez tenha sido o clarão do fogo no outro quarto que, chegando aos olhos do sonhador, mesmo com as pálpebras fechadas, produziu, sob a forma de sonho, a mensagem de incêndio. Podemos contestar, também, que embora o sonho tenha despertado o pai, produziu uma sensação muito boa, pois ele pôde conversar com seu filho vivo na forma de sonho. Embora essa sensação benévola se torne intensa demais, afinal de contas o filho morrerá queimado se o pai nada fizer, há um mecanismo onírico que inclui o elemento irritante do fogo de forma prazerosa.

Remeto novamente a uma reflexão de Zizek para dar fim a esse texto:

“O sujeito não acorda quando a irritação externa torna-se intensa demais; a lógica de seu despertar é bem diferente. Primeiro, ele constrói um sonho, uma história que lhe permita prolongar seu sonho, de modo a evitar despertar para a realidade. Mas a coisa com que se depara no sonho, a realidade do seu desejo, o Real lacaniano – em nosso caso, a realidade da censura do filho ao pai, ‘Não vês que estou queimando?’, que implica a culpa fundamental do pai – é mais aterrorizante do que a própria chamada realidade externa, e é por isso que ele acorda: para escapar ao Real de seu desejo, que se anuncia no sonho como apavorante” (ZIZEK, 1996, p. 323).

Portanto, o pai foge de sua culpa acordando. A “subversão onírica” de Cobb é enfrentar seu próprio desejo dentro de seu sonho, o que significa não ceder ao próprio desejo e acordar. Quando ele enfrenta a culpa de ter deixado Mal para continuar no sonho (culpa esta que o persegue inelutavelmente durante toda a trama), na sua conversa derradeira no filme, ele está subvertendo a lógica do sonho: quando a forma onírica mostra a Cobb a realidade de seu desejo, ele não cede, ele não é vencido; pelo contrário, ele enfrenta o desejo e vence.

É por isso que ele consegue dormir perpetuamente. Pois ele não acorda e foge diante de seu próprio desejo. Realiza, portanto, a máxima lacaniana:

“Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo”. (Jacques Lacan, Seminário 7 – A ética da psicanálise)

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BIBLIOGRAFIA:

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standart brasileira. Vols. IV e V. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

ZIZEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1996.



[1] Como diz o conceito, formação de reação, ou seja, transformar algo em seu contrário.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Mito e racionalidade: a crítica do iluminismo na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer.

Prólogo

O trabalho que segue abaixo foi apresentado e publicado no Caderno de Resumos da III Semana de Estudos Clássicos da UFS, cujo tema era “Mito entre culturas”. Embora, numa primeira vista, o texto não tenha ligação com a psicanálise, assevero, desde já, que a chamada Escola de Frankfurt, da qual Adorno e Horkheimer, autores centrais do texto, fazem parte, realizaram, talvez, a crítica mais vigorosa e revitalizadora da psicanálise no século XX, da qual até mesmo Lacan é devedor.

Portanto, seguindo as indicações do objetivo deste blog, onde uma das veredas indicadas é a realização de uma crítica social, posto aqui o texto na íntegra. Boa leitura a todos!

Mito e racionalidade: a crítica do iluminismo na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer.

Leomir Cardoso Hilário

E-mail: leomirhilario@yahoo.com.br

Resumo: Nascido de uma inquietação provocada pelo fato de que, num de seus trabalhos, Jean-Pierre Vernant não insere o estudo sobre o mito realizado pela Escola de Frankfurt dentre as correntes que pensaram este fenômeno durante os séculos XIX e XX, este texto procura defender que a teoria crítica pode e deve estar presente como uma tentativa de se estudar a relação entre mito e racionalidade, como também figurar dentre as possibilidades de análise para os estudos contemporâneos. Para cumprir essa tarefa, busca-se expor alguns dos conceitos elaborados por Horkheimer e Adorno em seu livro, A dialética do esclarecimento, bem como, na conclusão, esboçar algumas concordâncias entre o pensamento de Vernant e de Adorno e Horkheimer.

Palavras-chave: Mito, racionalidade, teoria crítica, Vernant, Adorno e Horkheimer.

No pensamento contemporâneo, alguns conceitos estão de tal modo conectados a seus autores que se tornaram sinônimos. Por exemplo, falar em genealogia no âmbito das ciências humanas remete ao pensamento de Foucault (2008); citar o termo diferença remete a Derrida; ao realizar uma crítica à lógica da identidade presente na racionalidade moderna se é direcionado ao conceito de lógica conjutista-identitária de Castoriadis (1995). Um dos pontos positivos dessa adesão entre obra e conceito é que ela sinaliza uma relativa inserção desses autores na universidade atual, e assim na reflexão contemporânea. Se não é um pensamento ainda hegemônico, é uma forma de problematizar as questões que está atualmente em ascensão. Portanto, significa um ganho sem igual diante dos antigos sistemas de pensamento que já não davam mais conta de pensar criticamente a contemporaneidade, dentre eles o positivismo e o estruturalismo. No entanto, pode-se correr o risco de inibir outras formas para se pensar os conceitos de genealogia, diferença e crítica à razão identitária, dentre outros.

Questionar sobre se haveria outras formas para se pensar um conceito como genealogia, por exemplo, remete-nos a um grupo específico de autores que não figuraram com predominância intelectual no século XX. Embora grandes nomes, como Foucault, tenham tecido fortes elogios[1] direcionados a eles, os pensadores que ficaram conhecidos sob o título de Escola de Frankfurt parecem constituir uma corrente minoritária no pensamento contemporâneo. De modo irônico, contudo, nomes como Adorno, Horkheimer e Marcuse, realizaram, cada um a seu modo e respectivamente, uma crítica à dialética hegeliana que busca afirmar a diferença, um estudo sobre as condições de possibilidade para a emergência da racionalidade e uma reflexão sobre as novas formas de controle que agem não só sobre o corpo e o prazer, mas também sobre a subjetividade, limitando as significações disponíveis. Ou seja, a Escola de Frankfurt elaborou novos conceitos e construíram problematizações acerca da contemporaneidade.

Em certa medida e mutatis mutandis, aquilo que Stein (1988) falou sobre Heidegger também vale para toda a Escola de Franfkurt, isto é, parafraseando Stein, esses pensadores são marxistas com e contra o Marx, filósofos contra a filosofia (nietzschianos com e contra Nietzsche), sociólogos contra a sociologia (weberianos com e contra Weber), psicanalistas contra a psicanálise (freudianos com e contra Freud) etc[2]. Ou seja, compõem uma obra singular diante de toda discussão que efervesce no século XX, sobretudo na segunda metade, entre existencialismo e marxismo, estruturalismo e pós-estruturalismo, dentre outras. Por isso mesmo resguardam até hoje outros sentidos possíveis aos diversos conceitos que balizam os debates contemporâneos.

Os motivos que levaram esses autores a não participarem mais ativamente da filosofia francesa contemporânea, apesar de ser um tema bastante frutífero, não só pela incidência dessa matriz de pensamento em nosso país como também pela singularidade dos autores da Escola, escapa em muito o objetivo dessa escrita, não obstante seja esse o solo em que ela emerge. O pontapé inicial, que motivou essa escrita, foi a leitura de um texto de Vernant (2006, p. 191-221) em que o autor não cita a Escola de Frankfurt, embora tenha se proposto a escrever uma parte dessa obra dedicada aos esboços de uma ciência dos mitos. Através da inquietação provocada por essa ausência de referência aos frankfurtianos[3], propõe-se que este artigo defenda a hipótese de que no pensamento frankfurtiano há uma proposta para se pensar a relação entre mito e racionalidade, a qual pode figurar entre as demais contribuições e correntes que estudam o fenômeno mitológico.

Essa afirmativa de que a análise mitológica levada a cabo pelos frankfurtianos pode e deve figurar dentre as possibilidades de investigação e de análise se deve não apenas a uma tentativa de resgatar o marxismo no campo das ciências humanas como uma reflexão possível e viável, mas também pela constatação de que se trata de uma análise que busca fazer com que várias dimensões de estudo apareçam numa análise e se constitui assim como uma alternativa epistemológica e metodológica. Ou seja, ocorre que, na Escola de Frankfurt, há uma proposta de uma múltipla perspectiva do objeto analisado. No exemplo particular dessa escrita, ver-se-á como, ao tratar do mito, várias dimensões de análise se encontrarão, tais quais a economia, a política, o poder, a antropologia, a literatura, a arte, a psicanálise etc.

Num primeiro passo, procura-se caracterizar a Escola de Franfkurt através das obras de Assoun (1991), Bronner (1997), Jay (2008), Merleau-Ponty (2006) e Anderson (1989). O objetivo desse ponto é esclarecer a singularidade do pensamento desenvolvido pela Escola e suas diferenças com relação ao marxismo oficialmente vigente à época. Os três primeiros estudos dizem respeito à história específica da Escola de Frankfurt. Com eles, procura-se também introduzir alguns conceitos e perspectivas dos autores para facilitar a discussão porvir. Enquanto os outros dois versam acerca de uma tradição de pensamento marxista na qual a Escola veio a se inscrever.

No segundo passo, entra-se propriamente na análise do mito como crítica do iluminismo proposta por Adorno e Horkheimer, logo depois se inicia uma exposição resumida da Odisséia, principalmente dois episódios que são analisados por Adorno e Horkheimer, a saber, a luta entre Odisseu e o Ciclope e também a artimanha encontrada para passar incólume pelos cantos das sereias. No terceiro e último passo, busca-se concluir a escrita propondo algumas convergências entre os posicionamentos diante do mito de Vernant, Adorno e Horkheimer.

A relevância de se refletir acerca da Dialética do Esclarecimento (doravante citada como DE) é a possibilidade não só de estimular uma outra visão para análise do mito como também, de acordo com Rabaça (2005), ter conhecimento de uma crítica radical da modernidade. Jay (2008, p. 320) considera que o extremo radicalismo dessa obra, a DE, pode levar à conclusão de que qualquer coisa que viesse depois só poderia ser uma espécie de aclaração adicional. Uma obra de tão grande porte merece uma maior visibilidade e essa escrita procura oportunizar, através da eleição da problemática do mito em primeiro plano, o conhecimento, ainda que demasiado resumido, de algumas das teses de Adorno e Horkheimer e sua importância para os estudos contemporâneos sobre racionalidade, subjetividade, modos de controle, possibilidades de transformação etc.

O marxismo ocidental: situação da Escola de Frankfurt frente às correntes hegemônicas do marxismo.

Um dos maiores pontos de radicalidade do pensamento presente na DE é a crítica virulenta ao próprio Marx. Entendendo a manipulação instrumental da natureza como produtora do mesmo tipo de relação entre os homens, depreende-se da leitura que nem o próprio Marx escapa ao esquema do eslarecimento, uma vez que ocorre, no seu pensamento, em certos momentos, uma ênfase e mesmo uma aposta no avanço das forças produtivas como índice de liberdade das relações sociais[4]. A DE se inicia efetivamente com esse questionamento, ou seja, se os avanços das forças produtivas não significariam bem o contrário, isto é, uma maior incidência de controle na vida dos homens. Diz o prefácio da DE:

“O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar num estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (HORKHEIMER, 1985, p. 11).

Antes de adentrar no modo como a DE constrói essa crítica, convém estabelecer um conceito mínimo do que significa “Escola de Frankfurt” e também quais elementos tornaram possíveis esse sistema de pensamento, isto é, o que está em jogo para esses autores e o que constitui a singularidade de seu pensamento.

Para Assoun (1991, p. 19), a Escola de Frankfurt é uma etiqueta que marca um acontecimento (a criação do Instituto de Pesquisas Sociais, em 1923, em Frankfurt), um projeto científico (intitulado de “filosofia social”), uma atitude (denominada “Teoria Crítica”) e uma corrente ou movimentação teórica concomitantemente contínua e diversa (constituída por individualidades pensantes). Para Jay (2008), o que une a diversidade dos autores que compõem a chamada Escola de Franfkurt é a concordância com relação a uma crítica do iluminismo e da racionalidade ocidental, a recuperação da crítica e da negatividade da teoria social e o diálogo constante com a obra freudiana. É esse primeiro ponto que Jay aponta, a crítica do iluminismo e da racionalidade ocidental, que constitui a linha para a reflexão dessa escrita sobre mito e razão através das reflexões da Escola de Franfkurt, envolvendo, logo, a chamada “primeira geração”[5], de Adorno e Horkheimer (mas também de Benjamin e Marcuse, dentre outros).

O trabalho de Anderson (1989) é uma crítica, muitas vezes negativa, a uma tradição intelectual comum a que ele denomina de “marxismo ocidental”. O autor engloba sob esse título uma miríade de autores, tais quais Lukács, Korsch, Gramsci, Benjamin, Horkheimer, Marcuse, Adorno, Sartre, Althusser, dentre outros, que estariam agrupados sobretudo por participarem cronologicamente de uma segunda geração de marxistas (todos nascidos entre 1885 e meados de 1920) e também por estarem geograficamente não no leste mas no centro da Europa. A Escola de Franfkurt, então, aparece como pertencente ao marxismo ocidental.

Dentre as características que vão definir essa tradição, Anderson (1989) salienta o divórcio estrutural entre marxismo e prática política, o que resultou numa falta de um intercâmbio ou conflito teórico de alcance internacional e as mudanças formais, ou seja, o abandono progressivo de estruturas econômicas como objetos centrais da teoria, provocando um deslocamento básico de todo eixo gravitacional do marxismo para a filosofia. Anderson (1989, p. 80) critica a transformação do marxismo em uma “disciplina esotérica cuja linguagem altamente técnica era a medida de sua distância da política”.

No pósfácio ao livro, Anderson (1989, p. 155) reconhece que não submeteu o marxismo clássico (de Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bukharin, Plekhanov etc.) ao mesmo rigor crítico que balizou sua análise do marxismo ocidental. Apesar dessa confissão e tentativa de correção, há uma característica dessa tradição, apontada pelo autor, que é por demais ilustrativa para introduzir algumas das reflexões da Escola de Frankfurt que aparecem nessa escrita como importantes. Qual seja, o afastamento do marxismo ocidental da análise teórica das questões econômicas ou políticas mais importantes resultou em utilizar o marxismo como um método para análise da cultura, sendo esta o alvo central de atenção dessa tradição ocidental do marxismo.

Merleau-Ponty (2006), num capítulo específico sobre o marxismo ocidental, põe a obra de Lukács (2003) como um ponto de viragem do marxismo, que passou a ser concebido mais como filosofia heterodoxa e não uma filosofia dogmática da história. Ao decorrer de todo o capítulo, Merleau-Ponty (2006, p. 35) procura desvencilhar a idéia de um marxismo mecanicista ou economicista. Afirma, por exemplo, que o materialismo histórico não é a redução da história a um de seus setores, seja ele a economia ou qualquer outro. Retomando uma frase de Marx, de que o capital não é uma coisa mas uma relação entre pessoas mediadas por coisas, Merleau-Ponty localiza nessa relação entre sujeito e o objeto, o processo de alienação/reificação, como momento prevalecente no marxismo ocidental. Livre do dogmatismo, do economicismo e do mecanicismo, o marxismo ocidental, forjado pela obra de Lukács, abre espaço para uma reflexão crítica acerca da sociedade capitalista que foi o projeto mais geral da Escola de Frankfurt.

Assoun (1991, p. 56) afirma que o marxismo, para a Escola de Frankfurt, é como uma “ferramenta-piloto” da crítica, não se inscrevendo no projeto proposto como uma doutrina exterior, mas sim a principal referência teórica. Da mesma forma que Anderson e Merleau-Ponty, entende que pensadores do chamado marxismo ocidental, como Lukács e Korsch, influenciaram o processo de renovação do próprio “materialismo dialético”. Assim, a Escola de Frankfurt escolhe o marxismo como operador da crítica cujo alvo é ele próprio inserido num conjunto de fenômenos analisados. O que significa dizer que no projeto de crítica da dominação o marxismo aparece tanto como um método que possibilita o questionamento radical da dominação e também como um produto mesmo do processo de subjugação do homem. Do mesmo modo como a Razão, ele é promessa de liberdade e materialidade totalitária, ou seja, é um método de investigação cujos conceitos se apresentam eles próprios não só como investigativos mas sobretudo como críticos (afinal de contas, conceitos como os de mais-valia e fetichismo da mercadoria surgem não só para explicar fenômenos da realidade social como também para a proposição subjacente de que eles podem e devem desaparecer do horizonte histórico), e também é uma ideologia legitimadora de um Estado totalitário, como era o caso do stalinismo na União Soviética no século XX.

Bronner (1997), assim como Assoun, Anderson e Merleau-Ponty, considera as obras de Lukács e Korsch, expoentes do chamado marxismo ocidental, como origens da teoria crítica. Dessas obras, obtiveram como legado a preponderância de uma crítica da cultura em detrimento de uma crítica economicista. Bronner (1997, p. 61) entende que a obra desses ambos autores colocaram as condições para se conceber o marxismo mais como uma teoria crítica da sociedade fundamentada em uma filosofia do que uma ciência baseada em afirmações fixas. Em certa medida, as categorias econômicas como a “mais-valia” e as “classes sociais” cedem espaço para os conceitos de “fetichismo da mercadoria” e “reificação”, que aludem a um processo de relação social que assume para os sujeitos a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, coisificando-se (LUKÁCS, 2003, p. 199). Tal proximidade leva Bronner (1997, p. 97) a afirmar que a teoria crítica foi um subproduto das inovações teóricas introduzidas pelo marxismo ocidental, uma vez que ele já havia argumentado que o marxismo não seria uma forma dogmática de reducionismo econômico com um catecismo de teses e previsões. Ao contrário, seria considerado um método inerentemente crítico, dedicado ao exame das relações sociais.

Jay (2008, p. 39) também encontra na gênese da Escola de Frankfurt o deslocamento do centro de gravidade socialista para o Leste europeu. Também encontra nessa gênese a proximidade com os pensamentos de Nietzcshe, Dilthey, Bergson, Kierkegaard e Husserl. Esses filósofos dão a Horkheimer e Adorno a possibilidade de encontrar um pensamento que privilegia a vida como protesto contra a racionalização e padronização do mundo administrado. E, sobretudo a partir de Nietzsche, fazem nascer uma potência crítica radical. Assim como Bronner, Assoun e Merleau-Ponty, Jay (2008, p. 363) confirma que, para a Escola de Frankfurt, o marxismo é uma crítica aberta e não um corpo de verdades aceitas.

O que todos esses estudos sobre a Escola de Frankfurt apontam é que ela se inscreveu na tradição marxista de modo a produzir uma teoria crítica da sociedade. Ao tensionar com o marxismo oficial vigente à época, resgataram a crítica não através da economia, mas da filosofia. Assim, os conceitos econômicos como os de classe social e mais-valia deram espaço para os conceitos filosóficos de alienação/reificação. De forma que a urgente transformação radical da sociedade – afinal de contas, o Instituto foi criado na esperança de ser entregue um dia ao Estado soviético alemão (WIGGERSHAUS, 2006) – transmutou-se em uma crítica teórica igualmente radical.

A análise mitológica e a crítica do iluminismo na DE

Conforme já foi apontado, um dos grandes objetivos da DE é realizar uma crítica radical à racionalidade moderna como maneira de se entender as condições de possibilidade de emergência do totalitarismo, sobretudo fascista. Em outras palavras, constitui-se aquilo que a DE coloca como “primeiro objeto”, a saber, a autodestruição do esclarecimento.

O iluminismo se configura, de acordo com Reale e Antiseri (1990), não tanto como um compacto sistema de doutrinas, mas muito mais como um movimento cuja base está a confiança na razão humana, cujo desenvolvimento é a condição de progresso para a humanidade e de libertação dos vínculos cegos e absurdos da tradição, das raízes da ignorância, da superstição, do mito e da opressão. Se o iluminismo surge, portanto, como uma rejeição dos sistemas dogmáticos metafísicos factualmente incontroláveis, como confiança no conhecimento científico e da técnica como instrumentos de transformação do mundo e de melhoria progressiva das condições materiais e espirituais da humanidade, como foi possível surgir um fenômeno radicalmente regressivo como o fascismo?

A DE se inscreve nessa problemática, da qual visa dar conta. Assim, a proposta é entender que entre mito e eslarecimento, razão e totalitarismo, não existe antagonismo inconciliável, mas um entrelaçamento constante. Quer dizer, não é que razão e totalitarismo sejam termos e fenômenos excludentes, mas versos e reversos um do outro, na medida em que ambos se implicam mutuamente. Os autores apresentam assim a tese que envolve o estudo sobre o mito e sua relação com a racionalidade:

“Em linhas gerais, o primeiro estudo pode ser reduzido em sua parte crítica a duas teses: o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia. Nos dois excursos, essas teses são desenvolvidas a propósito de objetos específicos. O primeiro acompanha a dialética do mito e do esclarecimento na Odisséia como um dos mais precoces e representativos testemunhos da civilização burguesa ocidental. No centro estão os conceitos de sacrifício e renúncia, nos quais se revelam tanto a diferença quanto a unidade da natureza mítica e do domínio esclarecido da natureza.” (HORKHEIMER, 1985, p. 15).

Antes de adentrarem nas teses propriamente dias, Adorno e Horkheimer constróem um conceito próprio de esclarecimento. Num sentido amplo, afirmam que se trata de um processo que tem por objetivo livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Poucas linhas depois, dizem uma das frases mais marcantes do livro: “o esclarecimento é totalitário” (HORKHEIMER, 1985, p. 22). Isso porque nessa dinâmica de transformar o homem em senhor, há um controle da natureza que desemboca num controle dos homens. Se o mito relata, denomina, diz a origem, expõe, fixa, explica etc., o esclarecimento reforça essa tendência. O positivismo, por exemplo, através de métodos como da experimentação, verificação, calculabilidade e utilidade agudiza a tendência já posta no raciocínio mítico.

“O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los.” (HORKHEIMER, 1985, p. 24).

Em outro momento, o conceito de esclarecimento é ainda mais explicitado em sua relação com uma ordem totalitária:

“A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie.” (HORKHEIMER, 1985, p. 43).

Numa reflexão marcadamente genealógica, a DE encontra no mito a condição de possibilidade do surgimento da racionalidade moderna. E na origem do mito encontram o anseio do homem em controlar, quantificar, matematizar, calcular e dominar a natureza como forma de se livrar do medo e da insegurança. Há um tipo de “angústia mítica” que se encontra radicalizada no esclarecimento, onde o objetivo é que se está realmente livre quando já não há mais nada de desconhecido no mundo, quando se decifram todas as leis de funcionamento, as lógicas que compõem o mundo, quando se pode predizer os acontecimentos a partir de um aparato racional positivo.

O excurso I da DE (Ulisses ou Mito e Esclarecimento) visa analisar alguns episódios da Odisséia como testemunho do entrelaçamento entre mito e racionalidade, ou seja, da dialética do esclarecimento. Ao refletir sobre as aventuras de Ulisses, a DE procurou encontrar um protótipo da subjetividade burguesa e a protohistória de sua constituição, ou seja, a DE buscou reconstruir o germe relacional que une razão e barbárie. Numa bela imagem, Assoun (1991, p. 85) diz que uma das teses da filosofia da história construída na DE é a de que a repressão está na Razão assim como o verme está no fruto.

Para Adorno e Horkheimer (1985, p. 56, 57, 61), a oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. Para que o herói Ulisses, fisicamente muito fraco em face das forças monstruosas e incontroláveis da natureza, possa lograr é preciso que seu mecanismo sempre gire em torno de perder-se a si próprio a fim de se ganhar. Esse movimento que Ulisses utiliza para sair vencedor das aventuras é intitulado por “astúcia”. A conclusão dessa análise mitológica da figura heróica conclui que esse domínio do homem sobre si mesmo como forma de vencer as forças naturais constitui a proto-história da subjetividade. Diz a DE:

“A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação das necessidades e impele ao extermínio dos homens – essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia”. (HORKHEIMER, 1985, p. 61).

Compreende-se que a DE aponta para lá de uma noção, da qual Arendt em certo momento aderiu[6], de que a ascensão do totalitarismo no século XX foi uma espécie de acidente de percurso, um evento sem quaisquer conexões com os modos de pensamento até então existentes no Ocidente. Com esse entrelaçamento entre racional e irracional, o nazismo emerge como a agudização de um processo já pressuposto na constituição mesma da sociedade ocidental. Na análise do mito da Odisséia, há dois episódios bastante claros acerca disso: o enfrentamento de Ulisses (ou Odisseu) à fúria de ciclope e ao canto das sereias.

Antes de narrar dois dos eventos que são objeto de análise, urge compreender em linhas gerais do que se trata a Odisséia. Para Reale e Antiseri (1990, p. 15), a Ilíada e a Odisséia exerceram sobre os gregos uma influência análoga à que a Bíblia exerceu entre os hebreus. Junto com a Teogonia, de Hesíodo, analisada por Vernant (1999, p. 154-170), os poemas homéricos servem de base para o nascimento da filosofia. Enquanto a Ilíada narra, em boa parte, a guerra de Tróia, a Odisséia conta a história do retorno do rei de Ítaca, Odisseu, a sua terra, após a batalha em Tróia. Embora haja uma discussão entre aqueles que defendem uma autoria múltipla, chamados de analíticos, e entre aqueles que defendem que o autor é apenas um, pode-se dividir a Odisséia em três seções: Telemaquia (cantos de 1 a 3), Regresso (cantos de 4 a 12) e Ítaca (cantos de 13 a 24). Seguindo essa divisão, proposta por Schüler (HOMERO, 2008, p. 10), pode-se afirmar que ambos os episódios que serão esmiuçados doravante estão situados no Regresso.

Esta sessão especificamente trata das aventuras de Odisseu para retornar a Ítaca. Sabe-se, a partir daquilo que abre a narrativa, que Odisseu encontra-se perdido em sua viagem de volta a Ítaca. É Posidon, a pedido do ciclope de olho vazado, cujo motivo se conhece posteriormente, mantém Odisseu errante, longe de sua pátria. Este episódio que envolve o ciclope é um dos que são analisados por Adorno e Horkheimer.

Em uma de suas errâncias marítimas, as tempestades danificam o barco de Odisseu e seus comandados. São conduzidos pelos ventos às proximidades da terra dos ciclopes:

“povo rude, sem lei, foi nosso porto imediato. Por depositarem a sorte em mãos celestes, não mexem um só dedo para plantar ou lavrar. O solo produz sem cultivo nem semente trigo, cevada, videiras. Cachos carnudos vertem vinho. Zeus avança cheio de chuva. Eles não sabem de assembléias deliberativas nem leis. No cimo das altas montanhas, vivem em grandes grutas. Cada qual legisla sobre mulheres e filhos. Solidariedade de uns com os outros não há.” (HOMERO, 2008, p. 121).

Encontram comida farta e descansam. Quando a Aurora os desperta, Odisseu convoca o conselho para deliberar como fará para conhecer melhor esse povo. Pergunta-se se são violentos, selvagens, sem lei ou será que acolhem os hóspedes com a mente voltada aos deuses? Odisseu percebe que está longe da sociabilidade grega, da vida em cidades. Sem ser conduzido por nenhuma necessidade, age como um investigador: quer saber se os habitantes são arrogantes, justos, hospitaleiros, se temem os deuses.

O narrador descreve o ciclope como um sujeito gigantesco que vive isolado, cuida de seus rebanhos, sozinho e afastado de todos, que não respeita a lei e espalha o medo. Odisseu adentra, com seus comandados, à caverna do ciclope. Lá encontram ovelhas e cabras. Os comandados aconselham Odisseu a dar o fora sem perda de tempo, levando o que quisessem. Sem levar em consideração tais conselhos, Odisseu decide ficar para esperar a volta do dono da caverna.

Quando o ciclope retorna, percebendo a presença dos humanos, questiona quem são eles e o que estão fazendo ali. Odisseu conta sua origem e implora que respeite os deuses, esperando que os estrangeiros sejam respeitados. O ciclope, no entanto, dá de ombros a essas palavras, desconsidera totalmente Zeus. Afirma que pode fazer o que der na telha com Odisseu e seus companheiros. Assim, mata rapidamente dois deles e fecha a caverna com uma rocha que de tão gigante e pesada tornava impossível que uma ação apenas humana pudesse movê-la.

Após matar mais dois, o ciclope sai da caverna e tapa novamente com a gigante rocha como se fosse uma tampa de panela. Odisseu reúne seus companheiros para uma assembléia deliberativa, pois teve uma idéia de como escapar mas precisava de uma ajuda corajosa. Tal idéia consistia em enfiar um cajado no olho do ciclope. No retorno do gigante, Odisseu oferece vinho para ele e diz que o faz na esperança de que ele fosse poupado da morte e pudesse retornar a Ítaca. Aparentemente sem dar atenção às palavras de Odisseu, o ciclope bebeu voluptuosamente o vinho e gostou bastante.

“Pouco lhe interessaram minhas palavras. Agarrou e bebeu. Botou de um trago a preciosidade goela abaixo e pediu mais: ‘Vem com essa delícia! Por favor! Teu nome! Como te chamas? Não ficarás sem recompensa. Sairás pulando de alegria. Te dou minha palavra’. (...) O gigante ululava. Agi. O brilho do vinho entrou-lhe o rubro pelo olho. Três vezes servi. Molhou a goela três vezes. A bebida afroxou-lhe o parafuso. Quando a bebida lhe tinha subido à telha, abordei-o com palavras de seda: ‘Caro Ciclope. Queres saber meu nome? Será um prazer receber a recompensa prometida. Nulisseu ou Ninguém é meu nome. Nulisseu me chamaram minha mãe e meu pai. Por Nulisseu me conhecem todos os meus amigos.’. A resposta abriu os bofes do monstro. Foi cruel: ‘Nulisseu, meu caro Ninguém, serás comido por último. Os outros descerão à minha pança primeiro. Este é o prêmio que te ofereço’ Rugiu e caiu de costas”. (HOMERO, 2008, pp. 134 e 135).

Nesse momento, Odisseu e seus comandados executam o plano: enfiam o cajado profundamente no olho do ciclope. Com extrema dor, o ciclope grita, arranca fora a rocha que impede a saída e entrada da caverna. Outros ciclopes se reúnem e perguntam-lhe o que acontece. Ao que o ciclope atingido apenas consegue responder: “Camaradas, é Nulisseu! Ninguém me agride. Ninguém me mata!”.

Na fuga, Odisseu canta vitória e revela o segredo já embarcado e remando para longe da terra dos ciclopes. Diz ao ciclope como o enganou. Também fala que se algum dia alguém o perguntar a causa do olho vazado do ciclope era para ele dizer que foi Odisseu, filho de Laertes, morador de Ítaca. Com essas informações, o ciclope dirige uma prece a seu protetor, que faz com que Odisseu caia na errância permanente em seu regresso.

As escalas seguintes de Ulisses foram a Ilha de Éolo (canto 10) e a tribo dos Lestrigonianos (canto 11). Nesta, devido à aparência de segurança, todos os navios, exceto o de Ulisses, ancoraram no porto. Ao percebê-los, os lestrigonianos, uma bárbara tribo, atiraram enormes pedras e fez todos os barcos naufragarem. Exceto o que jazia Ulisses, o qual, remando vigorosamente junto com os tripulantes de seu navio, conseguiram se safar. Com muito pesar devido a morte dos companheiros e concomitantemente alegres por terem escapado, prosseguiram viagem e chegaram à Ilha Eana, onde vivia Circe, a filha do Sol. Depois de alguns acontecimentos, Circe os ajudou nos preparativos para a partida e ensinou aos marinheiros o que deveriam fazer para passar são e salvos pela costa da Ilha das Sereias, próximo caminho a ser enfrentado por Ulisses.

“Ouvi, então, as palavras senhoriais da deusa: ‘Tudo isso chegou a um término feliz. Agora escuta. Uma outra voz divina te gravará na mente o que vais ouvir. Sereias serão tua primeira prova. Elas encantam todos os que porventura passam por elas. Quem inadvertidamente se entregar ao canto delas nunca mais retornará ao lar, nunca mais cairá nos braços da mulher, não verá os pequerruchos nunca mais. Elas enfeitiçam os que passam, acomodadas num prado. Em torno, montes de cadáveres em decomposição, peles presas a ossos. Evita as rochas. Tampa com cera os ouvidos dos teus companheiros para não caírem na armadilha sonora. Se, entretanto, quiseres o mel do concerto delas, ordena que te amarrem de pés e mãos ereto no mastro. Que o nó seja duplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las. Se, por acaso, pedires que afrouxem as cordas, ordena-lhes que as apertem ainda mais’”. (HOMERO, 2008, p. 217).

E assim segue Ulisses, ordenando, já depois da partida, que só a ele está reservado ouvir o canto. Ordena-lhes que o amarrem firmemente, ereto junto ao mastro e, se rogar que o soltem, que os comandados redobrem o nó dado. Assim o fazem e é narrado o canto das Sereias que, até então, permanecia em sigilo mortal.

São esses dois episódios, do ciclope e das sereias, que Adorno e Horkheimer desfilam suas teses acerca da proto-história da subjetividade ocidental. A astúcia que é uma salvação do herói mítico também se volta contra si próprio acabando com sua individualidade. Há um entrelaçamento entre salvação e perdição, liberdade e aprisionamento, que marca profundamente a racionalidade moderna, onde a técnica outrora responsável por libertar o homem do jugo da natureza agora lhe coloca num mundo totalmente administrado.

Na astúcia envolvida na aventura com o gigante ciclope, Odisseu salva a própria vida fazendo-a desaparecer. Com as sereias, o canto pode ser ouvido mas, em contrapartida, sua ação derradeira não pode ser executada, o prazer de ouvir o canto das sereias pressupõe uma queda da autonomia de Ulisses em gozar livremente do encanto. Como dizem Adorno e Horkheimer (1985, p. 64), Ulisses, tecnicamente esclarecido, isto é, deixando-se amarrar voluntariamente, arranja um modo de, entregando-se ao canto das sereias, não ficar entregue a elas. Os marinheiros de Ulisses, assim como os trabalhadores modernos, recalcam a satisfação para continuar a labuta. Em ambos, Ulisses pode driblar a inevitabilidade do destino mítico mas de forma que ele próprio se perde.

Em ambos os exemplos o que está em jogo é uma capacidade racional de antecipação e cálculo do que pode e deve acontecer. Desde o mito o pensamento funciona a partir dos registros da calculabilidade, do controle, da antecipação/predição, elementos que são herdados pela razão moderna. Na genealogia da razão ocidental o que Adorno e Horkheimer encontram é uma ânsia de controlar a natureza que se reverte em domínio do homem pelo homem. A astúcia mítica que une os processos de renúncia e sacrifício constitui, portanto, a base da dinâmica iluminista onde autonomia se reverte em heteronomia.

Mito x Razão: Vernant, Adorno e Horkheimer.

O projeto da DE foi o de relacionar mito e racionalidade para encontrar uma forma de compreensão do episódio histórico imprevisível e inacreditável do totalitarismo fascista, isto é, fenômeno ininteligível a partir do ponto de vista do esquema racional positivo. Ao propor que a base do mito produz uma relação que envolve a astúcia (sacrifício e renúncia) como produto de um cálculo antecipador cujo objetivo é controlar a natureza e cujo efeito colateral imediato é a subjugação do próprio sujeito austucioso, a DE abre caminhos para que se pense uma mecânica da Razão moderna que produz controle, embora seus objetivos manifestos sejam a ordem, o progresso, a evolução.

Uma primeira aproximação geral pode se dar através da noção comum a Vernant, Adorno e Horkheimer de que na Grécia antiga está boa parte daquilo que constitui o mundo moderno[7]. A astúcia salientada por Adorno e Horkheimer pode ser vista como uma técnica intelectual e forma de pensamento, segundo Vernant. Por outro lado, a posição de Vernant de que os gregos nos inventaram também é compartilhada pelos primeiros. Uma vez que eles entendem que a sujeição moderna a um mundo totalmente administrado já está pressuposto no modo de funcionamento mitológico.

Os dois trabalhos convergem, portanto, na triangulação mito, pensamento e sociedade. Esse triângulo permite que os autores supracitados não entendam o mito como evento subjacente à razão. Já não definem o mito por aquilo que ele não é, como ficcional, por exemplo, mas apreendem o mito em sua positividade, situando o mito no conjunto da vida coletiva de uma sociedade (VERNANT, 2006, p. 171) e como produtora de uma determinada relação entre homens e natureza.

Vão convergir também naquilo que diz respeito a uma crítica do marxismo que resulta numa abrangência do aparato conceitual para além da economia como campo determinante das relações sociais. Em Vernant (2006, p. 9), tal crítica aparece sobretudo como uma recusa de pensar o mundo antigo a partir dos conceitos de forças produtivas, relações econômicas de produção, regimes sociopolíticos e ideologia. Em Adorno e Horkheimer, como já visto e demonstrado, tais conceitos cedem espaço para uma análise das relações entre homem e natureza como produtora de uma dominação.

Embora esta escrita chegue ao seu fim sem ter dado uma resposta satisfatória da ausência de referência ao trabalho dos frankfurtianos Adorno e Horkheimer na obra de Vernant, ficou claro que, apesar dessa ausência, podem haver relações entre essas obras que se tocam em determinados pontos: como na relação entre mito, sociedade e pensamento e na posição crítica com relação ao esquema marxista vigente. De modo que essa falta de menção não significa, de modo algum, um descarte de Vernant desse marxismo de matriz ocidental que veio a condicionar o nascimento da teoria crítica. Essa ausência, portanto, pode ser entendida como uma porta aberta para conexões vindouras que se proponham a pensar as relações existentes entre mito, sociedade, história e subjetividade.


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[1] Diz Foucault: “Se eu tivesse deparado com a Escola de Frankfurt quando era jovem, teria ficado seduzido a ponto de não fazer mais nada na vida senão comentar seus trabalhos. Em vez disso, sua influência sobre mim é retrospectiva – uma contribuição que recebi quando já não estava mais na idade das ‘descobertas’ intelectuais’.” (JAY, 2008, p. 20) E em outro momento, diz: “Se eu tivesse conhecido a tempo a Escola de Frankfurt, muito trabalho me teria sido poupado. Eu não teria dito tantas tolices, teria evitado muitos rodeios tentando não me enganar, quando a Escola de Frankfurt já tinha aberto o caminho”. (WIGGERSHAUS, 2006, p. 36)

[2] Assoun (1991, p. 6) diz que ao se falar sobre a Escola de Frankfurt, convém deixar o campo deliberadamente aberto, praticando uma espécie de epoche (redução) fenomenológica. Esse processo de redução consistiria, segundo Giles (1989, p. 75), em colocar fora de circuito a doxa, a opinião, a atitude natural, revelando o objeto enquanto visado, ou seja, enquanto fenômeno singular.

[3] Inquietação que também foi fruto de saber que o próprio Vernant afirmou ser profundamente marcado pelo marxismo e o considerava metodologicamente indispensável. Diz o autor: “Fui profundamente marcado pelo marxismo, no qual mergulhei desde minha adolescência, há quase meio século. Falo do marxismo de Marx, não desse catecismo revisto e corrigido, às vezes até censurado, ao qual foi reduzido, primeiro para justificar determinada prática política, em seguida para justificar um sistema de Estado burocratizado e de governo autoritário. O primeiro me parece uma metodologia crítica indispensável para colocar corretamente questões de história; o segundo aparece como um substituto da religião trazendo a seus fiéis certezas e respostas prontas, o que evita que eles pensem em perguntas embaraçosas. Entre os dois, a diferença talvez seja da mesma ordem que entre mito e razão”. (VERNANT, 2002, p. 56). Em outra citação, ainda mais aproximativa, diz Vernant: "Essa problemática, que procurei aplicar à Grécia Antiga, situa-se precisamente na junção do marxismo e do estruturalismo" (ibidem, p. 57).

[4] Dizem Marx e Engels (2006, p. 57): “O progresso da indústria, cujo agente involuntário e passivo é a própria burguesia, substitui o isolamento dos operários, resultante da concorrência, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria abala sob os pés da burguesia a própria base sobre a qual ela produz e se apropria dos produtos. A burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. O desenvolvimento das forças produtivas surge, portanto, como finitude para o capital. O que há nesse trecho é a idéia marxista de uma passagem catastrófica (FAUSTO, 2007, p. 59) do capitalismo ao socialismo, mediada pelo constante progresso produtivo.

[5] Assoun (1991, p. 17) também aponta como um dos maiores herdeiros da Escola o pensamento de Habermas, que faz parte da chamada “segunda geração” da Escola.

[6] Diz Arendt (apud Jacoby, 2007, p. 121): “O nazismo não deve nada a parte alguma da tradição ocidental, seja ela alemã ou não, católica ou protestante, cristã, grega ou romana, [...] o nazismo é, na verdade, o colapso de todas as tradições alemãs e européias, tanto das boas quanto das más”. Contudo, essa não foi a única concepção de Arendt sobre o fenômeno do nazismo. Por exemplo, em sua última obra, falando sobre a banalidade do mal, Arendt (2008, p. 18) afirma: “O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear o mal incontestável de seus atos, em suas raízes, em níveis profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava em julgamento – era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso”. A partir dessas reflexões, o fenômeno do nazismo deixou de ser um acidente de percurso.

[7] Diz Vernant (Folha de São Paulo, 31/10/1999, caderno MAIS!): “Acredito, de fato, que os gregos em grande parte nos inventaram. Sobretudo ao definir um tipo de vida coletiva, um tipo de atitude religiosa e também uma forma de pensamento, de inteligência, de técnicas intelectuais, de que lhes somos em grande parte devedores. A história do Ocidente começa com eles”.