Sobre o objetivo deste blog.

Os textos a serem postados aqui neste blog se referirão sobremodo ao campo da clínica (da psicoterapia e da técnica) e suas interfaces, tais quais, a arte (literatura e cinema) e o social (política e subjetividade). O objetivo deste blog é servir como um meio de informação acerca da relevância e viabilidade do processo psicoterápico, bem como levar à reflexão acerca da contemporaneidade através do arcabouço teórico psicanalítico.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Teria a clínica algo a ver com a cultura?

Ou, em outras palavras, em que medida e intensidade a cultura atravessa a clínica? Na direção inversa, como a clínica atravessa a cultura? Sim, apesar de parecer menor do que a cultura, a clínica influencia sobremodo a contemporaneidade. Prova disso? Veja-se, por exemplo, a popularização dos conceitos freudianos clássicos, tais quais o de recalque, trauma, complexo, ou mesmo a idéia de que acontecimentos infantis determinam de alguma maneira a subjetividade de alguém. Idéias que hoje são muito comuns, mas tiveram seu ponto de partida com a psicanálise, a qual, por sua vez, iniciou-se com pouco mais de doze pessoas reunindo-se semanalmente.

Como demonstrou Ian Parker em seu estudo sobre o discurso psicanalítico na sociedade ocidental, a psicanálise influenciou o contexto histórico e as subjetividades no século XX. É como se a psicanálise tivesse se coagulado como uma tessitura na qual os sujeitos com seus sofrimentos se inscrevessem a todo o momento, como neuróticos, psicóticos, perversos, bipolares, borderlines, compulsivos, obsessivos, histéricos, fóbicos, fetichistas etc. A psicanálise forneceu um vocabulário específico dentro de um corpo teórico consistente e eficiente acerca da experiência de si. A psicanálise deu, também, ao nosso tempo um regime de verdade, uma série de práticas discursivas que disponibiliza para os sujeitos uma colagem explicativa e definitiva sobre si mesmo e suas relações com o outro, com o mundo exterior. A partir daí, explicações mecanicistas ganham força: “faço isso porque sou obsessivo”. Na medida em que um conceito já não funciona como dispositivo de transformação, ele já não serve mais para nada. É por isso que começar a na direção clínica para a cultura é mais apropriado, pois nos conduz à questão: a psicanálise ainda serve para alguma coisa após ter sido tão massificada?

Apesar das fortes evidências, vale frisar que a clínica se move sob o eixo da cultura e não o inverso. Isso significa dizer que são as mudanças culturais que determinam as intervenções e conceitos clínicos. É por isso que a psicanálise é aberta, uma vez que necessariamente está em constante mutação para acompanhar as modificações culturais. Porém, o que é cultura, o que é clínica e como ambas se relacionam? 

A cultura é um conceito amplo e plurívoco. Arbitrariamente, vou circunscrevê-lo ao âmbito do sujeito, ou seja, as relações que a cultura tem com o sujeito e procurarei a partir daí defini-la. Portanto: qual tipo de relação se estabelece entre sujeito e cultura? 

Há uma visão pré-marxista e pré-freudiana acerca da relação entre indivíduo e sociedade. Ela se constitui por colocar na conta do primeiro um substrato maligno radical que faz com que o homem seja movido por interesses incontroláveis, egocêntricos e destrutivos, que o impelem a agir automaticamente, suspendendo o exercício racional. Na conta da segunda, é colocada uma espécie de gestão desse anseio natural anti-social que tem como ganho direto a convivência social harmônica, estável. A problemática entre indivíduo e sociedade se torna uma questão de embate entre natureza primitiva incontrolável perigosa e formação social que visa transformá-la em modelo societal duradouro. Assim, são postos de um lado o instinto e de outro a lei. As relações entre indivíduo e sociedade vêem-se então reduzidas a um antagonismo inconciliável que tem como desfecho o necessário controle repressor da segunda para com o primeiro. Trata-se, portanto, de uma defesa definitiva que eterniza a repressão do indivíduo como condição fundante da sociedade. Os elementos em jogo nessa problemática são: o indivíduo como portador do desejo enquanto substrato anti-social e perigoso, do qual a sociedade precisa se proteger, e a dominação como aparato de defesa social obrigatório, necessário e trans-histórico, que garante o funcionamento e ordenamento das relações sociais para além do estado de natureza primário.

Os motivos pelos quais considero essa visão dicotômica pré-marxista e pré-freudiana deixarei para um momento posterior. Esse passeio conceitual nos servirá porque embora seja uma visão simplista e não dialética, contém algo de verdadeiro: a cultura é responsável pelas interdições e o sujeito tem de lidar com elas de alguma forma. Isso equivale a dizer, em linguagem freudiana à moda da tradução padrão, que a civilização é construída sobre uma renúncia pulsional (cf. Mal-estar na civilização). Proponho, no entanto, a seguinte conceituação: à cultura cabe a regulação pulsional dos sujeitos em prol de uma organização societal estável e duradoura. 

Se a cultura é responsável pela regulação pulsional dos vínculos sociais, saímos da idéia dicotômica entre indivíduo e sociedade, uma vez que essa regulação pode se dar sob o registro da repressão, mas também sobre o registro do estímulo, e outros registros ainda não pensados/pensáveis. Durante a primeira metade do século XX, de consolidação institucional e conceitual da psicanálise, na sociedade européia estava em marcha o dispositivo disciplinar cujo objetivo era moldar subjetividades para o trabalho e o capitalismo. Uma sociedade regida pela rigidez das instituições, como a escola, o hospital, o quartel, a prisão, casamento, família. Havia, muito mais do que hoje, uma ortopedia moral rigorosa imposta aos sujeitos. 

Uma cultura, sem dúvida, muito próxima de uma repressão. Assim, o sofrimento dos sujeitos estava condizente com essa cultura: neurose como modelo hegemônico. A saber, a neurose tem como pilar a noção de culpa produtora de uma angústia a ser sistematizada de alguma maneira específica. Esse sofrimento angustiante se converteu no corpo (como nas histéricas, cujas paralisias não tinham nenhum substrato orgânico, desafiando o saber médico), deslocou-se para o pensamento (nas obsessões clássicas de repetições de rituais absurdos como repetir uma mesma frase sete vezes para que algo não aconteça), objetificou-se na realidade (como no caso da fobia em que há a presença de um pânico defronte um objeto fóbico aparentemente inofensivo ou cujo medo que pode despertar não é tão grande). 

É claro que essa divisão das modalidades da neurose é por demais esquemática, porém serve para o objetivo que tenho aqui, a saber, de mostrar como um tipo de cultura produziu sofrimentos específicos que, por sua vez, fez a clínica construir conceitos para dar conta desse sofrimento contextualizado. Assim, o sujeito sofrente que surge na clínica está atravessado por uma determinada cultura. São as exigências que a cultura lhe impõe que o fazem presente na psicoterapia. 

Nessa linha, talvez a neurose tenha aberto espaço para outras modalidades de sofrimento. Há autores, como Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, que apostam na primazia hoje do modelo perverso. Em outras palavras, como a sociedade passou de um modelo repressor para um modelo permissivo, a gestão libidinal passou a ser do gozo consumista. Assim, o sofrimento pode advir, muitas vezes, não de um arrependimento ou de algo não feito, mas sim de uma incapacidade de gozar, de seguir os mandamentos sociais imperativos. Uma mudança no eixo da cultura, passando de uma ordem social e simbólica pautada na interdição para uma ordem onde o que é proibido é proibir, ocasiona mudanças fundamentais na ordem do aparelho psíquico. 

É neste sentido que, terminando essa reflexão de uma forma sumária, posso afirmar que a clínica tem tudo a ver com a cultura. E vice-versa. De modo que uma clínica que não estiver orientada por uma reflexão cultural corre o sério risco de ser estéril.

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Por Leomir C. Hilário.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Todos precisam de psicoterapia?

Essa frase acabou virando um senso-comum e, como tudo o que cai na boca do povo, tem lá sua verdade e eficácia. Porém, é mais do que imprudente que os psicólogos encampem essa generalização. Se o compromisso ético do psicólogo é com uma modalidade específica de cuidado, endossar uma espécie de psicologização pode ser contraproducente, embora financeiramente rentável. Existem algumas condições de possibilidade para o surgimento, consolidação e efetivação de uma psicoterapia. Condições estas que garantem, de algum modo, aquilo que a psicoterapia se propõe a fazer. A minha intenção nesse curto texto é tentar dar conta do que leva a essa idéia de que todos nós precisamos de psicoterapia e quais são as precauções éticas, quer dizer, que tipo de posicionamento ético é viável diante dessa demanda social. É ilustrativo a esse respeito tomar conhecimento do fato de que o Rivotril foi o segundo medicamento mais vendido no Brasil em 2008, perdendo apenas para o Microvlar (um anticoncepcional). Antes mesmo de falar qual é a função do Rivotril, convém ainda deixar mais claro o dado: ele vendeu mais do que Tylenol (aquele remedinho que, com certeza, você já viu alguém tomando ou pedindo para tomar). Não deixa de ser surpreendente o fato de um remédio controlado, tarja preta, com venda controlada e necessária receita médica, tenha sido tão vendido e até hoje muito procurado. Isso levanta uma discussão bastante próxima da que estou querendo propor aqui: será que, realmente, tantas pessoas precisam fazer uso desse medicamento?

Vamos dar nomes aos bois. Rivotril é um ansiolítico, ou seja, age contra a ansiedade, controlando-a. É também usado como relaxante muscular, podendo ser ativado no caso de uma insônia, por exemplo. Existe um tipo de “efeito bem-estar”, por isso há até quem o use devido a um fim de relacionamento. Acontece uma extrapolação médica na medida em que remédios são usados para intervir em questões de ordem cotidianas, em certa medida até naturais/esperados no curso de uma vida saudável e minimamente estável. 

O que há, hoje em dia, é um certo império da felicidade com suas drogas da alegria. É como se houvesse uma onda que quisesse extirpar da vida tudo aquilo que seja supostamente negativo, como a dor, o sofrimento, a imperfeição etc. Em minha opinião, a psicologia não deve participar dessa onda. Afinal de contas, assim como não só existem rosas em nossa vida, mas também duros espinhos (como a perda de um ente querido, o final de uma relação, uma tristeza repentina), a psicoterapia também é um percurso humano, o qual não deve haver nem uma necessidade imperiosa e genérica, tampouco se colocar como um privilégio ou um luxo. 

É certo que a psicoterapia é saudável e salutar para um bom número de pessoas, assim como o Rivotril, se usado corretamente e com maior precisão terapêutica, também pode ser muito bem indicado. No entanto, ambos são provisórios, momentâneos. A diferença radical entre ambos é que a psicoterapia trata de uma travessia singular de cada um, cuja construção dinâmica é um campo aberto de possibilidades de autoconhecimento. É nesse sentido que podemos dizer que a psicoterapia é indicada para toda e qualquer pessoa, mas não usando o verbo “precisar” pois ele supõe uma necessidade. A psicoterapia se coloca hoje como um espaço viável num mundo de fugas. Ela pode, e em alguns casos deve, provocar um bem-estar relativo e constante. Já o Rivotril não, trata-se de uma generalização absurda e abusiva.

Enquanto o Rivotril pressupõe uma espécie de autocontrole, a psicoterapia produz um autoconhecimento. O verbo “precisar” até combina com autocontrole, mas não com autoconhecimento. Portanto, a frase poderia ser melhor formulada do seguinte modo: “a psicoterapia é uma experiência viável e salutar para todos”. Apesar de parecer sutil, essa mudança terminológica pode ser um bom instrumento para que não caiamos na idéia psiquiatrizante de que “todos precisam de Rivotril”, desde aquele trabalhador cujo sono está perturbado pela iminência da demissão até aquela jovem garota cuja crença é a de que entrou em depressão por ter terminado com seu príncipe encantado, passando pelo idoso.
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Isto posto, de minha parte, prefiro me contentar em afirmar a psicoterapia como um processo viável para toda e qualquer pessoa. Não nego que ela seja, em alguns casos, necessária, imprescindível. O que quis pontuar até aqui foi somente de que os psicoterapeutas não podem entrar nesse frenesi generalista.